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Cenas da vida em São Paulo – Parte 8

Sexta-feira. Ônibus parcialmente lotado. No fundão, três amigos conversam. Um oriental está ao lado da janela do lado direito. Ao lado dele, um moreno. Na cadeira do meio, um branquelo, que o oriental insiste em chamar de mestre. Do outro lado, um homem pesca peixes sonhadores, dormindo com o sacolejar da lotação. O oriental o aponta para os dois, e ri. Os três aparentam ter mais de 35 anos.

É o oriental o responsável por manter o fluxo narrativo da conversa. Quando o silêncio se aproxima, ele logo emenda um novo assunto, como fugindo do gongo que anuncia o final da luta no boxe:

Então, acho que o Radiohead vai tocar em março aqui…

Os outros dois amigos se olham com cara de sexta-feira à noite após uma semana de trabalhos forçados:

Quem? É uma banda?
É – responde o interlocutor
Não conheço – responde um dos rapazes, pelos dois.

Alguns segundos de silêncio e o mesmo rapaz que respondeu diz, quase que de forma inaudível:

Eu comprei um CD do Renato Borghetti.
Renato o que? – pergunta o amigo da ponta.
Borghetti. É um sanfoneiro.
Tipo o Gonzaguinha? – pergunta outro
– Não, ele é gaúcho. Faz música regional.

O juiz sobre o ringue de boxe começa a contagem para encerrar a conversa. Quando chega no oito, desesperado, o oriental vai e pergunta qualquer coisa para um dos amigos:

Você comprou algum livro do Dostoievski na feira da Geografia

Quatro – responde o outro.

O ouvinte, que flagra a conversa dos três amigos, começa a pensar que – em menos de cinco minutos – a conversa saiu de Thom Yorke, passou por Renato Borghetti, chegou em Gonzaguinha e terminou em Dostoievski. Poucos escritores no mundo conseguiriam tal façanha em um curto diálogo.

O ônibus está chegando ao final, e enquanto um dos amigos tenta adivinhar os Dostoievski que foram comprados por aquele que não conhece Radiohead, mas é fã do Borghettinho (“Crime e Castigo”, já tenho, “Os Irmãos Karamazov”, já tenho, “O Idiota”, já tenho, “Os Demônios”, já tenho, “Noites Brancas”, esse eu peguei agora), o outro retoma o ponto inicial da conversa:

Qual banda que você falou que vai tocar mesmo nesse feriado?
Radiohead, responde o outro, envolvido na descoberta dos outros três Dostoievski que foram comprados.

Se alguém disser a você que o Radiohead vai tocar em São Paulo no feriado, duvide.

*************

O ônibus chega ao ponto final, metrô Vila Mariana. Os três amigos descem e uma conversa entrecortada passa pelo ouvinte, que só consegue pegar uma frase. Uma amiga diz para a outra, enfaticamente:

Eu quero essa cidade só para mim.

Nananinanão. Vai ter que dividir.

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