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Cinema: “A Era da Inocência”

“A Era da Inocência”, de Denys Arcand – Cotação 3,5/5

Primeiro, do começo: esqueça a tradução idiota da distribuidora nacional: “L’Âge des Ténèbres”, na verdade, é “A Idade das Trevas”, período histórico que se seguiu às invasões bárbaras que puseram fim ao decadente Império Romano. Ou seja, com “A Idade das Trevas”, o cineasta canadense Denys Arcand fecha uma trilogia informal – sobre a crise da civilização moderna – iniciada em 1986, com “O Declínio do Império Americano”, e que teve continuação em 2003, com “As Invasões Bárbaras”, que levou o Oscar de Filme Estrangeiro.

Jean-Marc LeBlanc (Marc Labrèche), personagem central do terceiro capítulo desta epopéia dos tempos modernos, é um ouvidor municipal infeliz com a profissão, casado com uma workaholic que não larga o celular um segundo sequer (e com quem ele não transa faz mais de dois anos), com duas filhas que desconhecem sua existência de tão afundadas que estão em games e iPods, vivendo em uma sociedade cujo caos tornou-se a regra através de congestionamentos, abandono político e médico, cerceamento social e epidemias, entre outras pequenas tragédias.

Com exceção de dois amigos do trabalho (ele, negro; ela, lésbica), LeBlanc não pode contar com mais ninguém, por isso se entrega aos sonhos em que encarna um escritor cujo primeiro livro foi premiado, um político, um rei, um carrasco e até um samurai. Nos sonhos, que surgem em qualquer momento (no banheiro, no trabalho, no trânsito), LeBlanc está sempre acompanhado por belas mulheres, seja a repórter voluptuosa que após a entrevista quer sexo “aqui e agora”, seja uma famosa modelo que o visita regularmente, seja a amiga lésbica do trabalho ou mesmo sua chefe, que surge ali para ser punida.

São dois cenários grotescos e deliciosamente interessantes que se intercalam na tela: o primeiro, real e crudelíssimo, exibe um homem que se perdeu completamente da civilização, que por fim perdeu-se de si mesma estampando em manchetes de jornais pessoas que ateiam fogo no próprio corpo enquanto outras falam ao celular sem nem prestarem atenção ao que acontece ao lado. O segundo, irreal e cômico, tenta saciar anseios sexuais, afetivos e de justiça enquanto critica o politicamente correto, a overdose de tecnologia, o “trabalho escravo” voluntário e a busca do verdadeiro eu em fantasias surreais (esta última numa paródia hilária de “O Senhor dos Anéis”). Enquanto a vida real é tratada com tintas de desespero e melancolia, a vida irreal é puro sarcasmo e prazer.

Denys Arcand usa a ironia como se ela fosse um pesado taco de beisebol, e manuseia o objeto com extrema destreza, desferindo fortes pancadas no baixo ventre, na cabeça e, por fim, no coração de seu público. Trafegando entre dois mundos, seu personagem Jean-Marc LeBlanc é um retrato perfeito das contradições da sociedade moderna. O ceticismo de Arcand para com a modernidade – o qual “As Invasões Bárbaras” amplifica de forma sublime apoiado pela desilusão política – encontra momentos de genialidade cinematográfica em “A Era da Inocência”.

O cineasta canadense provoca seu público de forma brilhante tentando arrancar dele algum senso de humanidade enquanto sabota as instituições sociais (família, casamento, trabalho, mídia) e só tropeça no trecho final do filme, quando sugere que a saída da idade das trevas é o recolhimento, um retiro espiritual, a negação da modernidade. E mesmo nesse tropeço (ou principalmente por ele), Arcand consegue dar ao seu público um momento interessante de questionamento: a culpa do caos é pessoal ou social? Há como separar um de outro? Se o social está falhando, o pessoal deve agir pensando em si mesmo? Se sim, qual seria a solução: voltarmos ao passado ou nos prepararmos para o futuro?

Para o canadense e seu personagem sonhador vitimizado, o recolhimento parece ser a solução. Seria uma premissa válida se LeBlanc não fosse tão conformado. Ao perder-se no tempo, no casamento, em sua própria história (optando por sonhos ao mundo real), LeBlanc representa um ser pré-histórico que lê Fernando Pessoa (”Livro do Desassossego”), foi vice-presidente do grêmio no colégio, participou de passeatas, greves, e tentou, mas não conseguiu mudar o mundo. Por fim, calou-se e desistiu até escolher o retiro ao caos, o pessoal ao social, opção umbiguista que revela – por trás de um verniz culto – muito mais medo do futuro do que apreço pelo passado e propõe uma questão crucial : o problema é o mundo ou a pessoa? Por que? Pense bem: a resposta pode traduzir o seu futuro, caro leitor.

Ps. A foto acima é de uma das melhores cenas cômicas de “A Era da Inocência”, compatível a cinco filmes inteiros do Adam Sandler…

março 26, 2008   No Comments

“Live at The BBC”, Lloyd Cole

Responsável por ao menos uma obra prima dos anos 80, o álbum “Rattlesnakes” (1984), o músico inglês Llyod Cole tem sua história revista com o lançamento de suas BBC Sessions (tanto solo quanto ao lado dos Commotions, banda com quem dividiu os holofotes entre 1982 e 1989). São três CDs (dois duplos) que registram apresentações entre maio de 1984 e março de 1995 nos programas de Richard Skynner, Janice Long e Nicky Campbell além de apresentações nos míticos Hammersmith Palais (1984/1995) e festival de Glastonbury (1986).

Cole só foi encontrar os parceiros ideais para uma banda quando se mudou para Glasgow, onde foi estudar filosofia. Junto aos Commotions, Lloyd lançou três álbuns –”Rattlesnakes”, “Easy Pieces” (1986) e Mainstream (1988) – cuja característica principal era a união de um texto repleto de citações pop (Norman Mailer, Jules at Jim, Grace Kelly, Truman Capote, entre outros) com uma musicalidade que unia o folk pop com pitadas de rock psicodélico (passado pelo filtro do pós-punk). Sobre a massa sonora, a voz charmosa do compositor.

“Vol. 1? abre com uma pungente versão de “Gloria”, do segundo álbum do Television, no programa Saturday Live (1984). Transbordando lirismo, seguem-se versões inspiradas – e completamente fiéis as originais – de “Perfect Skin”, “Rattlesnakes” e “Forest Fire” (três singles do álbum de estréia). O calor do público no Hammersmith Palais faz com que as versões dali se sobressaiam às captadas nos estúdios da BBC. O quindim de “Vol. 2? é o show em Glastonbury que destaca os hits de sempre (”Perfect Skin” em versão fodaça) mais “Mystery Train”, de Elvis Presley, que fecha a apresentação, no bis.

O terceiro volume é quase que totalmente dedicado a um show completo de 1995, mais quatro registros de 1990 (ambos sem os Commotions). Versões de hits pedem passagem (com arranjos diferentes, pero no mucho: nos três CDs são seis versões de “Rattlesnakes” e cinco de “Perfect Skin”), mas o que chama a atenção são as covers de Lou Reed: “Rock and Roll”, “New Age” e “A Gift”. Importante resgate histórico, estes lançamentos valorizam a obra de Lloyd Cole, um excelente compositor que hoje caminha a margem da música pop. Vale, ainda, ir atrás da edição especial (dupla) de “Rattlesnakes” (relançado em 2004) e “Anti Depressant” (2006), último álbum solo de Cole, pequenos achados de um compositor que precisa ser redescoberto.

março 26, 2008   No Comments