Caleidoscópica
Autômatos Erectus ?

por Dulce Quental
04/09/08


Por uma ação firme, sem violência!
Por um mundo de escuta e de delicadeza!

As coisas parecem que perderam a alma, a aura. As pessoas parecem que se tornaram coisas, coisas vazias. Objetos perdidos num mundo onde nada faz sentido.O que nos resta então? Com quem dividir nossa humanidade comum? Com autômatos erectus? Despossuidos da consciência de si e do outro; incapazes de compaixão?

Eu preciso me comunicar, para isso, escrevo; canto; faço canções. Para sair de mim e me conhecer através do espelho do olhar do outro. Essa é a minha condição; a de sêr da linguagem. É assim que eu me inscrevo no mundo; como um ser dotado da capacidade de pensar sobre si mesmo e num ato de “conatus”, comunicar sua presença: eu falo, logo, manifesto a minha existência num ato moral; que é falar o que penso, e com isso provocar uma ação sobre o real.

Eu sou um ser ético. Tenho a responsabilidade sobre o que acontece comigo e com o outro com quem me relaciono. Eu sou por natureza um ser político. Eu não sou um animal; um ser vivente que sente apenas dor e prazer. Eu tenho consciência do que sou e por isso faço escolhas. O que aconteceria se eu deixasse de acreditar nisso e passasse a pensar e a agir, ou a não pensar e a não agir, desacreditando no que tenho a dizer, na linguagem ou no poder de ação dos meus atos?

Aconteceria o que acontece hoje. O mundo não é aquilo com o qual eu me identifico. O mundo é algo diferente demais de mim. Porque ele não é fruto da minha razão, do meu desejo, da minha imaginação e da minha ação. Ele é fruto da minha ausência. Da ausência do meu pensamento, do meu ato e da minha criação.

Imprevisibilidade, caos social, brutalidade. Para enfrentar o problema: uso da força pura, arbitrária, formando um estado de exceção, de violência descontrolada. Em qualquer esquina, bala perdida. Em qualquer hospital, desrespeito a vida elementar e a dignidade do ser humano. Vidas interrompidas por nada; vidas que não valem nada. Apesar de vivermos num estado de direito, com punições para delitos de todas as ordens; do mercado financeiro ao crime comum; temos nossas vidas desrespeitadas num abandono de todas as instâncias do poder institucional, e em todas as áreas da ação humana, da educação à saúde.

Não há como negar, o tecido social se esgarçou de tal maneira pela corrupção dos burocratas, pelo egoísmo das elites, pela alienação da classe artística; pela miséria intelectual e afetiva de grande parte dos grupos sociais, que fica difícil imaginar como seremos capazes de sobreviver ao acumulo de tamanha alienação.

Se não resgatarmos a nossa dignidade como seres políticos dotados de razão ficará simplesmente impossível manter a vida minimamente administrável. Não é mais possível continuarmos a viver assim. É preciso reagir já e em todas as instancias das relações. Da familiar a publica. É preciso promover um programa de educação para formação ética e moral da cidadania a fim de se trazer de volta os verdadeiros valores humanos. Valores pelos quais vale a pena trabalhar, sofrer, viver e lutar; valores que justificam a existência.

Bombardeados diariamente por imagens e sons, onde não nos reconhecemos mais, vivendo em função de satisfazer demandas totalmente supérfluas, criadas pela indústria de consumo e entretenimento, fascinados por uma tecnologia vazia de conteúdo, sem aura, sem alma, sem espírito humano criador, estamos cada vez mais nos apequenando como seres humanos e nos tornando coisas virtuais; totalmente descartáveis; deixados a morrer nas filas de espera; nos subúrbios, nas zonas de risco; nas periferias; desempregados; informais; provisórios, como objetos.

Não, nós não somos lixo. Não somos máquinas. Não somos animais. Somos seres da linguagem. Somos poetas. Somos arquitetos do mundo. Somos políticos.

Vamos pensar para votar certo. Vamos confrontar idéias. Falar com os amigos, os vizinhos. Ler e estudar. Vamos participar da vida social e política. Desde a reunião do condomínio até a reunião na escola dos nossos filhos. Temos que refazer o tecido social que se rompeu. E só poderemos fazer isso se sairmos de nós e lutarmos pelos nossos direitos. O Estado deveria ser de direito, mas o direito foi pro escambau. As instituições são governadas por seres humanos falhos. Temos a obrigação de tirá-los de lá porque fomos nos que os elegemos. Temos que lutar para inverter a relação de forças. Por uma ação firme, sem violência, por um mundo de escuta e de delicadeza.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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02 - O Pensador Independente
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07 - Cinema, morte, êxtase, provas de amor
08 - As Dores do Crescimento
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