Caleidoscópica
Educação Sentimental

por Dulce Quental
29/05/06


O cachorrinho late segurando uma carta para mim. Que não é sua. Oh! Baby! Que pena! Uma multidão de spams disparam na tela. Nenhuma mensagem sua. Oh! Baby! Me faça esquecer. Estou grudada em nós. Por onde eu vá não há lugar em que eu não nos veja. No Arpoador, agora mesmo, enquanto estourava uma onda, pensei em nos ver ali mesmo. Caindo como iniciantes no surf. Nosso rascunho de amor nesse dia lindo. Em todas as canções que eu poderia compor. Agora. Enquanto escuto essa música que me devora.

As estações mudam, nós não. Por que não? Por que não? Deixar que nos levem. Como Jobim numa canção que falasse de um nós. Desse amor desejado. Desajeitado. Como um despertar na noite escura. Como uma canção que eu talvez compusesse. Como Chico Buarque. Como o Leblon antes do pôr-do-sol. Sentimental.

Preciso acordar. Preciso tomar banho. Preciso trabalhar. Quais são mesmo meus planos? Não sei onde estou e este lugar sem tamanho ou nome é meu. Tenho vontade de fugir. Hoje enquanto caminhava, encontrei uma amiga que me convidou para uma exposição de ovelhas. Eu pensei: “Quem sabe tiro meu chapéu de cowboy e minhas botas do armário e arrisco a pegar a estrada em direção a Brokeback Mountain”. Quem sabe não encontro uma ovelha que cure meu coração partido. Esse coração que abre e fecha bombeando sangue. Coração que se abriu tanto que se esqueceu de fechar deixando você entrar.

"Do you like graceful Gay doing fine? Jolly youngest land in hard fucking. Kind-heated excite for pennies. Youngest exquisite sluts fuckked by".
Uau!! Quem esses caras pensam que eu sou?

Vivemos num futuro sítio arqueológico. Por isso precisamos viver o agora, o inclassificável. Há um que de originalidade sempre imprevista em cada novo encontro. Seria burrice demais não experimentar e seguir seguindo estereótipos. Não quero estar no lugar de alguém que espera. Não quero alguém que caiba no meu sonho. Serei jamais proveito e somente fama? Amei e amarei sempre. Mas cada vez é como se fosse a primeira. Desaprendendo tudo. Começar de novo. Em estado de inocência. Quem sabe eu não tenha assim a chance da reparação. Pode ser diferente, baby! Um continente na sua singularidade. Uma viagem para nos conhecermos melhor. Serei obrigado a me apaixonar, como todo mundo? A ser ciumenta, rejeitada, frustrada, como todo mundo? Eu me pergunto, num fragmento de discurso amoroso Barthesiano.

"Deixe que o beijo dure. Deixe que o tempo cure."
Me recuso a cair nessa. Quero a liberdade de estar nua nessa historia. Mesmo agora enquanto o sol entra pela janela lambendo meu rosto.

Passei a noite sentindo o seu cheiro, seu toque, pensando em você em todas as canções que escutei. É a originalidade da relação que é preciso conquistar. As frustrações de desempenhos, as vergonhas do corpo idealizado. Ser de carne e osso. Procurei um poema que pudesse nos traduzir. Não encontrei. Da mesma forma que você não encontra um lugar para mim. Não encontro um espaço, um “topos”, um topo, um discurso. Não é um plano perfeito. Não cabe em nenhuma das opções acima. Não combina com a mobília.

Caminho e deixo o prazer do pensamento pelo meio. Quero voltar e rebobinar meu filme, a página em branco, mas não posso. Uma outra paisagem se instalou. E depois outra e depois outra. Em movimento, me lembrei do que havia esquecido. Há alguns segundos atrás eu disse que te amava? Foi há muito tempo. Eu tinha apenas vinte anos. Me apaixonei, como toda menina boba e inexperiente nas coisas do sexo. Enquanto a manhã despontava sob a luz da Ilê de Saint Louis, e a névoa ainda encobria os primeiros sinais do dia, como uma menina feliz com a sua mais nova travessura, olhando o rio, como um horizonte que se apaga no frio da manhã. Até me dar conta do que eu havia perdido, vendo você desaparecer, com a cara nos cadernos e livros e os olhos em todas as mulheres do mundo; louco por cinema: Win Wenders, Nicolas Ray, Samuel Fuller, Alfred Hitchcock.

Tive que fugir. Viajei. Andando por toda parte. De Paris à Praga. Atravessando a cortina de ferro. Dias de trem pela Europa Oriental. Dando para tchecos, iugoslavos, franceses, africanos, "clochards". Esqueci. Voltamos a nos ver várias vezes. Em todas elas, uma rapidinha fugidia. Sem tempo para pensar: "Não é nada, só sexo, nenhuma amizade. Sem história, só episódios". Por que lembrei de você? Porque estou roubando o sol desse momento para estar mais uma vez aí.

Tiro a blusa para sentir o calor nas costas. Para tomar esse sol na cara. Para tomar esse sol no cu. Quem sabe aprender a desligar. A relaxar. Alongo os músculos, encurto o pensamento. Estou precisando de mim mais do que de alguém. E penso que o corpo de uma outra mulher, o ideal de mulher, a mulher que você procurou em mim e que eu não sou, não existe mais. Está no ar. Antes de mergulhar. Com a identidade flutuando. Sem nome. Sem mãe, sem filho, sem amigos. Apenas como a inimiga. Aquela que quer tomar o seu lugar. O seu falo. A sua fala. Aquela que quer te castrar. Te destruir. Te fazer igual a ela. Ou seria o contrário?

Te apavora essa idéia? O corpo dissociando da imagem, a necessidade de exibição da masculinidade. Essa imagem idolatrada que fala também de você?

A vaidade goza mil vezes diante da platéia virtual legitimando a sua existência especial. Diferenciada da massa anônima. Como então amar uma simples mulher sem o público? Não se enquadra em nenhuma das opções acima.

No meu caso, todos as opções abaixo estão valendo, inclusive aquela que eu deveria ter escolhido, desde o começo.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com