Caleisdoscópicas
Os Sonhadores

por Dulce Quental
21/10/05


Talvez eu seja a ultima romântica ainda a sonhar com Atlântida. Se já não existem barricadas e muros a derrubar, e o transgressor perdeu o seu lugar; transgredir o que, para ir aonde, eu me pergunto, se não há um sonho coletivo ou algo por que lutar? A luta pela sobrevivência em si não pode ser a única causa que justifique a existência. Somos humanos, seres desejantes, precisamos de muito mais do que condições de vida. Precisamos de sonho e magia.

Houve uma época em que sonhamos um sonho coletivo. Nele cabiam todas as músicas e letras. Éramos românticos, escutávamos jazz e também rock and roll. Falávamos de literatura, respirávamos cinema, fazíamos política e amor. Tudo numa névoa mágica que fazia o mundo andar para frente, pois onde há utopia também existe esperança.

Mas os nossos sonhos ruíram. A realidade matou a esperança. E o que sobrou foi só o mercado. Tudo virou produto. A revolução cultural nos levou a um individualismo sem fim. Miramos na China de Mao e aterrissamos na Califórnia. Alguma coisa se rompeu. Já que não podemos mudar o mundo, vamos cuidar das nossas vidas. Cada um por si.

Mas meus sonhos não foram vendidos. Continuo acreditando neles. Como um "altista", flanando no séc XVIII; embora obrigada a viver no XXI; rascunhando poemas/canções, usando tintas fabricadas a mão, para pintar paisagens no meio de imagens em alta definição. Continuo a brigar com o mercado, nadando contra a maré. Não consigo remover a idéia de que é essa a função do artista: transgredir, fugir de qualquer fórmula de repetição, de qualquer prisão. Mas quem se importa, quem dá valor ? Onde estão os jovens sonhadores de 68? Onde estão os sonhadores de Godard e Bertolucci?

Sonhar um sonho coletivo parece que se tornou impossível no mundo de hoje. Temos toda tecnologia às nossas mãos, no entanto, falta o essencial: conteúdo. Os meios se tornaram mais importantes do que aquilo que é transmitido através deles. Mudam-se os formatos, mas as idéias continuam as mesmas. Mesmas canções, mesmos arranjos, regravados a exaustão, agora também em DVD.

Sinto um falta enorme de ideologias, de sonhos de transgressão, de uma arte corajosa, que provoque interrogações, que contenha vazios, que mexa com as pessoas. Não uma arte que seja aceita, consumida, catalogada e digerida como um comercial. Me assusta, nos dias de hoje, a forma como a nossa liberdade foi surrupiada. Como entramos todos de gaiatos no navio. Como o capitalismo criou novas formas de apropriação do nosso desejo, se aproveitando do vácuo deixado pela queda das utopias.

Entorpecidos de imagens, consumimos o que nos é vendido como um trampolim para a realização dos nossos sonhos. Sabemos que jamais teremos ou seremos o que gostaríamos. Mas o poder de consumir algo que é objeto do nosso desejo gera a ilusão de que existimos como todo mundo. Veja bem, existimos como todo mundo, mas não com todo mundo. Não temos um objetivo comum. O fato de desejarmos os mesmo objetos não nos torna parceiros. Nos torna escravos do mesmo sistema. Não trabalhamos para conviver, mas para consumir. Nos endividamos para satisfazer a demanda do consumo, achando que nos endividamos para construir um futuro melhor para as nossas famílias. Enquanto os bancos continuam cada vez mais ricos e nosso dinheiro vale cada vez menos.

Só temos uma saída. Parar de consumir. Desconfiar de tantas demandas que se apresentam como indispensáveis, mas que na verdade nos aprisionam nesse ciclo sem fim de trabalho e consumo. Temos que investir mais nos relacionamentos. Ver menos TV. Viver com o mínimo necessário. Alimentar o pensamento com informação de qualidade. Temos o poder de escolha todos os dias. Temos a Internet, um meio de comunicação poderosíssimo e que ainda não foi controlado pelo mercado. Eles na verdade não sabem o que fazer. Não podem evitar que falemos entre nós, sem intermediação. O poder da televisão foi gravemente atingido. Deixamos de ser agentes passivos de informações geradas por formadores de opinião, que pré-determinam o que temos ou não acesso, o que deve ser repercutido. Com a Internet e a rede de informação descentralizada somos todos agentes ativos, geradores de idéias e informações. Nós decidimos o que nos interessa, formamos nossas comunidades e nos organizamos a partir delas. Falta usarmos esses meios para discutirmos relevâncias e não infantilidades e toda sorte de besteiras, como parece ser o caso.

Novos meios e agora por que não novas idéias.

Talvez, como lembrou Arnaldo Jabor, a nova revolução seja silenciosa, feita por grupos, em ações que não visam a tomada do poder, mas sim a destruição, como um vírus, do establishment, aqui representado pelas grandes corporações. Seremos todos hackers do futuro, quebrando senhas, downloadiando arquivos confidenciais, pirateando filmes e programas de computador pelo simples prazer da contestação? Ou para não pagar pelo serviço, o que nos tornaria a todos delinqüentes legítimos ? Ou continuaremos sonhamos individualmente, trancados em nossos quartos, enlouquecidos para fazer nossos sonhos decolarem, sabendo que na maior parte das vezes eles minguarão, seja por total falta de recursos, seja pela falta de oportunidades, principalmente para trabalhos que não alimentam a ideologia do mercado? Você que está aí do outro lado da tela me responda. Sou como a fada Sininho da fábula do menino que não quer crescer. Só existo se você também existir e acreditar no que eu tenho a dizer. Tem alguém ai?

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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