Caleidoscópica
Confissões de Divã

por Dulce Quental
04/04/06


Aos pingos de conta gotas. No sufoco. Um pensamento aqui, outro ali. Uma espinha. Uma erva daninha. Depois de descascar todas as camadas da cebola descobriu-se oca. Só invólucro. Sem conteúdo algum. Mesmo assim continuou. O que fazer? Eram verdades bélicas e mentiras inócuas. Confissões de divã. O fundamental escapara. Há anos falando ali. Perdendo tempo. Ela não melhorava. No início achou que com ele seria diferente. Depois de cinco anos a esperança começou a quebrar. Alguma coisa estava fora do lugar. Mas o que?

Ela se enganava. Se apegara a ele como a mais uma muleta. Fizera a tal da transferência. Ele era o pai severo, a lei que colocava limites, batendo pesado. Não se lembra de uma única sessão que não tivesse valido a pena. O tempo com ele validava mais do que custava. Pelo menos era o que ela achava, pelo menos até agora.

Ele a fez perder todas as ilusões. Mas ela não imaginava que a maior delas, a que a faria mais sofrer, seria a que ela construiu ao redor dele. Por isso, ela o odiava mais do que tudo. Ódio que a mantinha num círculo repetitivo de autoflagelação. "Há muita maneiras de se perder por aí. Muitas drogas, muitas compensações. Podemos viver pagando dívidas de culpa. Nos autopunindo, nos autoflagelando pra compensar toda sorte de abusos , de erros cometidos, conscientes ou inconscientes. Temos todos os gadgets a nossas mãos. Tecnologia, controles remotos, pílulas pra dormir, afrodisíacos, i pods, vibradores, dvds, drinks, fast-foods, e até pessoas. Pessoas/objetos pro nosso prazer. Bonecas infláveis. Pênis de plástico. Orgasmos virtuais. Por que se dar ao trabalho de tentar conhecer alguém ou a si próprio? Conhecer alguém demanda tempo e trabalho. Se podemos fazer tudo de forma mais rápida e eficiente, de forma também que não atrapalhe o nosso ritmo de produção ou o rendimento da empresa, melhor não? Por quê passar anos no divã tentando se conhecer? Por quê se dar ao trabalho de cavar na escuridão da terra mais profunda a raiz da arvore da identidade? Será que há volta pra essa viagem?" Depois de implodir a si mesma, ela se perguntava: "O que construir no lugar dos escombros?"

Ela não sabia se queria continuar conversando com ele. Talvez ela não fosse o emplastro certo para as suas dores, pensou. Existe uma teoria que diz que a análise perfeita acontece quando o paciente produz saídas que servem também para a cura do analista; teoria que vai de encontro à idéia de que ser analista é estar permanentemente em tratamento através do paciente. Se fosse assim, pensou, a terapia com ele estava fadada ao fracasso. Ele era frio, agressivo, orgulhoso e arrogante. E nunca estava interessado nas saídas criativas que ela produzia. Por quê então continuar com ele?

A resposta era obvia. Por culpa. Ela se sentia culpada porque achava que ele precisava mais dela do que ela dele. Há tempos queria partir pra outra mas não sabia como. Ela tinha uma dívida de gratidão, além de dois anos de sessões pra pagar, já que ele a estava atendendo em confiança, esperando receber logo que ela acertasse a vida de novo.

Mas o tempo estava passando e ela não acertava nem a vida nem o tratamento com ele. "Talvez essa seja a forma que encontrei de continuar eternamente travada", ela pensou, se sentindo num nó de dar dó, mas sem pena de si mesma: "Quantas pessoas passam pela vida sem ter a menor idéia de quem são de verdade. É preciso muita coragem para encarar a si mesmo, sem ilusões e fantasias. Só quem conseguiu segurar a onda de ficar sozinho diante do próprio abandono, sem culpar as pessoas pelas escolhas erradas, tem a chance de ter um verdadeiro encontro. Ir ao inferno e voltar purificado é a recompensa pra quem aprendeu a ser o seu próprio pai e mãe", pensou. "Não preciso mais do colo do mundo mas de parceiros pra viver. Quero pagar as minhas contas e dívidas de amor e gratidão e pensar sozinha, sem padre, sem sermão, sem analista, nem nenhuma forma de compulsão. Sou capaz de passar longos períodos de abstinência de tudo: grana, sexo, pessoas, trabalho. Embora nem sempre eu deseje isso."

Ela então se decidiu. Não queria mais "pagar a conta do analista pra nunca mais saber quem era" - frase enigmática de Cazuza que ela nunca entendeu. Se não era quem imaginava ser, quanto mais descascasse a cebola mais cascas apareceriam. E se ela não era nada e tão pouco tinha, assim seria. Uma outra coisa. Parte de uma outra relação. Um outro tipo de comunicação. Mais amorosa. Mais honesta. E ele era muito rígido e muito fechado a tudo que ela dizia.

De início, achou que a ortodoxia dele a protegeria. Mas com o tempo percebeu, sem saber, que virtude e caráter nada tinham a ver com eficiência. O medo que tinha de cair em mais um tratamento inócuo, dentre os muitos pelos quais tinha passado, a impediam de contestar a relação. Descobriu com o tempo, que a relação entre os dois era pobre e que não dava vazão a enorme pulsão dos seus desejos, autodestrutivos ou não; a terapia estava muito aquém das suas questões e ela estava perdendo terreno, a longas distancias da vida real. Agora que estava sozinha, com um terreno baldio a explorar, sabia exatamente o que fazer. Teria que se livrar dele.

A primeira idéia que lhe ocorreu surgiu sem que ela tivesse tempo pra pensar. Ele jamais aceitaria os seus argumentos, era orgulhoso demais pra isso. Só havia um jeito dela conseguir se livrar dele: matando-o, ali mesmo, no divã, antes que outros pacientes chegassem. Mas de que maneira, com que arma, com que palavras, ela se indagava, tentando manter o controle pra não desabar. Tinha que arrasá-lo. Fazer com ele se sentisse igual a ela: "Se ao menos ele procurasse entender as minhas razões e se colocasse no meu lugar, em vez de se manter sempre a distancia, como uma autoridade dona do saber e da verdade?", ela se consolava, consciente da decisão que tomara.

Não havia mais dúvida, ela precisava matá-lo. A sangue quente, não à moda Capote. Mas como? Ela nunca tinha matado ninguém. Se lembrou da melhor amiga, ela certamente adoraria a idéia e a ajudaria a pensar em alguma saída. Por enquanto, não havia nada a fazer. Ela estava satisfeita. Da próxima sessão não passava. Ele poderia não crer mas ela encontrara uma nova razão pra viver: destruir ele, exatamente como ele havia feito com ela.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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