Caleidoscópica
A Voz da Chuva

por Dulce Quental
12/02/06


O mundo desaba lá fora. É o Rio de Janeiro depois de quase quinze dias sem chuva. Quem sabe, se a água que agora cai em tempestade, não lava a cidade levando o ar estagnado dos últimos dias. Ouvindo a chuva cair senti pouco a pouco as idéias voltando e com elas as palavras que tanto eu precisava.

Sento pra escrever escutando o barulho das gotas batendo no chão. É domingo e depois da agitação dos últimos dias finalmente encontro um pouco de calma pra pensar e escutar o que dizem essas linhas. E o que elas dizem? O que tagarelei todo o dia e agora me empurra para frente da tela me obrigando a tentar chegar no que em mim cala e silencia?

Alguma coisa me diz que devo continuar tentando. Que não devo parar de olhar para os lados. Que cada sílaba valerá o risco de todas as ciladas. Que os desencontros e as escolhas erradas serão no fim recompensadas com um tiro na mosca.

Por enquanto a mosca está ganhando há léguas de distância. Mas eu não desisto. Continuo treinando. A voz, o corpo, a mente, tudo para que na hora do salto, na hora do palco, na hora do sexo, na hora do golpe, na hora H, eu não vacile. Não posso amarelar. Cada gesto tem que ser preciso.

Para isso, treino todos os dias com a disciplina de um monge. Nervos ainda débeis, músculos inexistentes, vontade vacilante; ora na trave ora fora de campo; mas não tem importância. Estou dando os primeiros passos. Identificar os erros gravíssimos é melhor do que nada. E choro ainda, choro lágrimas, não de arrependimento; mas porque perder qualquer coisa ainda me é difícil.

Estou lendo o volume 1 das crônicas de Bob Dylan. Já no ultimo capítulo vou diminuindo o ritmo a fim de retardar ao máximo o fim da leitura. Não quero me separar do meu mais novo amigo. Foi bom escutar sua voz, acompanhar seus pensamentos. A arte de viver e compor canções com honestidade é difícil. Dylan é o cara pra mim. Mais honesto jamais existiu. Tão duro consigo mesmo. Tão fiel às coisas que amou. Não se furtou durante a vida a abandonar o barco. Sempre que ele se desviou foi o primeiro a saltar, dando ao público sempre o melhor de si. Nunca aceitou pouco. Quando a fonte secou, entrou em crise, se afastou do mundo, da música e foi cuidar da família. Ficou um bom tempo sem escrever e só voltou a compor quando alguma coisa foi maior do que o silêncio.

O que é maior que o silencio?
O que pode ser mais importante do que a voz que vem do coração?

Sair das margens do mundo e mergulhar na roda gigante outra vez, girando, girando, 24 horas por dia, um dia de cada vez, como faz o planeta azul. Nada pode ser mais difícil pra quem passou uma temporada no inferno ou uma meia vida sem cérebro e pernas. Nada pode ser mais desafiador.

É preciso reaprender a andar, como um bebê. É preciso reaprender tudo de novo. Ou melhor, é preciso aprender o que nunca foi ensinado. O que ninguém te ensinou. Para isso, é preciso encontrar as pessoas certas. Ler os livros certos. Perder o tempo necessário com o que é importante. Mas como saber o que é importante? Tudo é importante e não é. Pequenas coisas podem ser muito importantes. As grandes, nem tanto. É nelas que residem as maiores ciladas. Pretensões muito altas, obstáculos distantes demais, muito papo e nenhum pé no chão. Segue aqui a sugestão. Receita de quem já deu muita trombada.

Mas eu sempre me levantei. Sempre encontrei um jeito de dar a volta por cima. Na maior parte das vezes sem sentir muito como isso acontecia. Encontrando um ritmo para o corpo, prestando atenção na respiração, me mantendo em movimento, quando tudo em mim e a minha volta me dizia para parar. Mas eu sabia, se parasse ia ser mais difícil levantar. Então eu simplesmente me mantinha em movimento, tentando estar o mais saudável possível, sem excessos. Já me bastavam os pensamentos disparando sem parar toda sorte de interrogações acerca de tudo. Só o que eu precisava era respirar, uma vez de cada vez, acalmando a mente e alinhando o pensamento com a ação. Era só conter a enorme ansiedade das horas. Escutar o silencio, espiar o vazio, sem medo. Em movimento eu encontraria o ritmo contido nas palavras. Com ele, eu escreveria uma linha. Depois outra e outra, até que toda chaminé estivesse limpa. Aí então, eu alcançaria o rio subterrâneo onde corre o fluxo de imagens; e o meu pensamento estaria livre outra vez.

Livre para fazer qualquer coisa. Uma salada. Uma canção. Eu estava no presente. Não precisava antecipar nada. Meu coração batia um batimento de cada vez, como o som de um surdo de escola de samba. Agora, com pensamentos e emoções, querendo resolver tudo numa tacada só, misturando alhos com bugalhos, como esperar equilíbrio ? Nada pode dar certo.

Temos que aprender a cozinhar. A costurar. A fazer pão. Não me admira nada o ator Daniel Dan Lewis, no auge de uma crise pessoal, ter se dedicado a aprender o oficio de sapateiro. Pode haver coisa mais poderosa do que fazer o seu próprio sapato, a sua própria casa, o seu próprio pão ?

Se eu soubesse fazer alguma outra coisa por que eu seria então um artista, uma compositora, uma cantora? Ser o que eu sou foi o melhor que eu consegui fazer de mim e da minha vida. Pode não ser o suficiente, pode não ser o melhor de mim ou o melhor pra mim e para os outros mas é o que eu me tornei.

Agora, sentada aqui, pensei, e o meu pensamento foi claro e cristalino, como uma gota caindo do céu. Eu não poderia estar em nenhum outro lugar. E se isso não era possível porque então não estar aqui, inteira, por que não gozar com essa idéia?

A voz da chuva pareceu gostar. O eco da minha voz respondeu rompendo o silencio de algum lugar. A voz da chuva...

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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