Caleisdoscópicas
Como se renovar sem se tornar cinza?

por Dulce Quental
06/12/05


Como se renovar sem se tornar cinza? É preciso matar alguma coisa de inocente. Alguma coisa de sonhador. Alguma coisa de que a gente ame demais. Para sobreviver. Para parar de sofrer. Para pagar as contas. Mas o quanto estamos dispostos a cortar? Que idéias seremos capazes de amputar? Quais das nossas pernas? Que sonhos, quais filhos? Que livros e poemas abandonaremos? Corremos o risco de cortar aquilo que nos é mais importante. O trabalho que vem da alma.

Ao mirarmos nas ervas daninhas podemos acertar no girassol e em sua locomotiva. Podemos acertar nos nossos próprios pés. Ao mesmo tempo, ignorar os limites da realidade não deixa de ser uma espécie de aniquilamento.Temos que ter discernimento. Discernimento que dissemine orações, que gere novas ações, que movimente os nossos corações, que batem por razões e dês-razões.

A Oração da Serenidade é ótima. Todos os compulsivos deveriam lembrar dela pelo menos uma vez ao dia. Pra quem não conhece lá vai: "Senhor (seja lá quem ele seja), concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso, e sabedoria para saber a diferença". Simples não?

Que nada! Não pode haver coisa mais difícil para um idealista do que abrir mão dos seus sonhos.O seu vício é o impossível. Não há limite que não possa ser transgredido. Essa é a sua maior força: a ousadia de se jogar, sem rede de proteção. Ao mesmo tempo é aí que reside o perigo, o calcanhar de Aquiles que poderá comprometer toda a sua estatura; pois mesmo para o mais hábil dos jogadores, sempre chega a hora de parar. Identificar esse momento, muitas vezes invisível, é quase mágica. É preciso muito mais que matemática. Um sexto sentido, intuição, experiência, informação diversificada, sei lá; há algo da ordem do sagrado e do profano nessa fronteira que ultrapassa os limites da razão e do conhecimento. Talvez pudéssemos chamar de sabedoria, inata ou adquirida ou porque não, inteligência emocional; mas o fato é que há gente que parece que tem essa aptidão desde cedo, enquanto outros levam uma vida inteira pra desenvolver. Mas uma coisa é certa. É preciso viver no mundo real, não no das idéias de Platão e Schopenhauer.

Todo artista que se preza vive esse dilema. Não é nenhuma novidade. O dramaturgo Arthur Miller explorou com maestria o tema, em algumas das suas mais importantes obras, como After the Fall e Finishing The Picture. Nelas, ele reproduz o dilema que viveu ao se separar de Marilyn Monroe, com quem foi casado. Para Miller, Marilyn simbolizava o que havia de mais puro e inocente nele. Ir embora foi a forma que encontrou de se salvar da morte. Segundo a psicanalista Marie-Magdeleine Lessana, que está lançando um livro sobre a vida da atriz, Miller se culpa por sobreviver ao se defender e negar o amor que sentia por Marilyn. Nesse contexto, diz a autora, ele é como os sobreviventes dos campos de concentração; não sente nenhum tipo de orgulho; deixa para trás pessoas que morrem por serem inocentes e perseguidas por um mundo cruel. Só consegue suportar isso porque escreve. Para defender e suportar essa verdade. E suportar a realidade, como quem vive, mesmo que num doce desespero, é melhor do que morrer.

A maioria das pessoas sequer vive esse dilema. Desde cedo é obrigada a abandonar os seus sonhos; ou para corresponder às expectativas impostas pelos outros; ou porque nasceu na pobreza absoluta e teve que vender a sua força de trabalho, para viver e se sustentar.

Aceito melhor a idéia de adequação, pois não posso conceber a vida sem criação e utopia. Como o cineasta Bernardo Bertolucci, acredito que sem ideologia não há utopia, fundamental para que exista esperança, e com essa, futuro. Prefiro ainda acreditar que, mesmo tendo perdido parte dos meus sonhos para o mercado; e alguns dos meus melhores amigos - os mais inteligentes, por sinal - já estarem mortos; e muitas das palavras de ordens por mim proferidas, já estarem vencidas; exista razão pra lutar por um sonho possível.

Para tanto, é imprescindível procurar encaixar o sonho dentro das possibilidades reais. Enquadrar projetos em leis fiscais. Evitar embates suicidas, que só nos levam a falência dos sentidos. É preciso usar novas táticas. Ler os manuais de guerra. Aprender as estratégias de marketing do inimigo. Já que não estamos mais em simbiose com a terra-mãe e fomos banidos do paraíso ou do idealismo, tão longe do chão, temos que aceitar os limites da nossa dês-razão, daquilo que não é nosso, daquilo que é o mundo e a sua lei do cão. Seremos mais fortes se acreditarmos na máxima do maior filósofo que já existiu: "O que não nos derruba nos fortalece". E como se renovar sem se tornar cinza?

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com