Caleisdoscópicas
Por que gostamos de Woody Allen

por Dulce Quental
16/08/05


Embora nossas casas se assemelhem aos cenários dos seus filmes, quantos de nós já pisamos em lugares parecidos com aqueles que freqüentam os seus personagens? Não moramos na grande maça com sua variada oferta de lazer, cultura e diversão; mas enquanto assistimos os filmes de Woody Allen, nos sentimos próximos do seu mundo. Mas a realidade é que estamos muito mais distantes e exilados do universo retratado por Allen do que imaginamos. Apesar disso, Woody Allen é hoje um dos poucos cineastas que nos tocam o coração. Mas por que?

Uma das razões é que evidentemente somos todos um pouco neuróticos. Talvez uns em menor escala. Mas se na maioria das vezes, não nos sentimos como ele, uma espécie de compaixão nos toma por aproximação, fazendo-nos acolher com carinho seus personagens trapalhões. O que na vida real nos causaria repulsa e desprezo, nos filmes de Allen nos encanta. Seu anti-herói é fraco, feio, covarde, fracassado e desajeitado. No entanto, ele conquista mulheres, é inteligente e puro de coração.

O Glamour é a chave. Woody glamoriza através do cinema o que na vida real muitas vezes não tem graça nenhuma. No seu mais recente filme lançado no Brasil, Melinda, Melinda, ele nos mostra como consegue transformar tristeza em alegria, num exercício de alquimia. A vida é curta, por isso, é melhor se divertir antes que ela acabe. Nada nos protege da morte. Nem um atestado de saúde. Nem prozac, nem analista. Com a idade chegamos mais perto do fim. O melhor a fazer então é aproveitar. Sem dramas. Sem tragédia.

Mas a vida é uma tragédia. E grega. Injusta e sem significado. Podemos vivê-la como tal, e morrermos como heróis, mortificados pelo sofrimento, como um cristão; ou quem sabe, rir do nosso infortúnio, enquanto fazemos das pequenas coisas e dos momentos, uma festa.

A luz certa. A cor do vinho. O copo de cristal. Lençóis pasteis. Sempre muito jazz. Um piano tocando ao fundo, como se a vida fosse uma eterna "happy hour". Apartamentos com varandas, janelas para um céu estrelado. As cidades sempre aos nossos pés. Pequenos detalhes. Nada muito luxuoso porém confortável. Um cenário mais do que perfeito para os diálogos de Woody Allen. Verdadeiras batalhas verbais. Conversas sem fim sobre tudo e nada. Allen é um tagarela de marca maior. Fala pelos cotovelos. Fala da sua dificuldade de falar. De viver. De se relacionar. Seus personagens são ridículos. Fatais. Falam de relacionamentos pra se relacionar. De desejos, pra desejar. Suas neuroses são naturais. Com uma naturalidade e coragem ímpar. E ao falar de tudo isso ele se redime, se trata, se cura, se dá. Nos tirando da escuridão junto com ele.

Sempre saio dos filmes do Woddy Allen querendo voltar de novo. Ou melhor. Nunca quero sair dos filmes de Allen. Sempre levo um choque quando a luz da sala se abre e tenho que mergulhar na realidade. Depois fico semanas vivendo o filme, rindo sozinha e sonhando com os apartamentos, restaurantes, enfim, com a vida que imagino que exista do outro lado do oceano, numa cidade "civilizada" como Nova York.

Depois caio em mim, na real, na rotina dos dias com suas contas, seus chatos e tendo a achar como deve ser difícil para Woody Allen viver e fazer os seus filmes. A realidade é totalmente diferente do mundo que ele retrata. Esse homem é um herói. No sentido mais lato do termo. Porque consegue criar um universo paralelo ao seu, acreditar nele e nos convencer durante algumas poucas horas de que ele existe.

Dulce Quental é cantora e letrista.
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com