Caleisdoscópicas
Cinema, morte, êxtase, provas de amor

por Dulce Quental
26/08/05


Sexta-feira livre. Dever cumprido. Filho devidamente despachado. Banho tomado. Uma rápida folheada no jornal. Sessão escolhida. Resolvo então ligar para a amiga de sempre. O telefone toca, ela atende e uma conversa meio heavy se desdobra.

"Desse final de semana não passa. Estou decidida. Vou me matar", sentencia a amiga do outro lado da linha. Escutando com paciência, procuro encontrar argumentos que justifiquem uma intervenção. Sei da luta que ela enfrenta há mais de dois anos para vencer a depressão, infelizmente sem resultados. Um silêncio incomodativo paira sobre nós. Temo dizer que a vida está mesmo uma droga.

Difícil é a arte de envelhecer. Não há fuga nem refúgio pra dor. Mas num rompante, arrisco uma tirada pagando pra ver: "Você não pode fazer isso comigo. Vai me obrigar a fazer também e eu tenho uma filha, não tenho essa opção", transferindo rapidamente o foco do problema pra mim. Assim são os artistas, egocêntricos até o fim. Do outro lado da cidade ela ri. Por alguns segundos distraí sua atenção. Aproveito a deixa e aviso: "Estou indo praí." Desligamos.

Uma hora depois, no Leblon, o porteiro avisa: "Ela saiu." Imagino: "Foi pra casa da mãe. Estava ansiosa e não quis esperar". Diante da inutilidade da minha presença resolvo arriscar, quem sabe pego a última sessão de cinema...

Já na sala de projeção, entre cavernas e morcegos, lembro da minha amiga na frase mas bacaninha da nova versão do Batman: "Caímos para aprendermos a nos levantar", diz Alfred, o cult-mordomo. Pura cultura pop.

No ônibus, de volta pra casa, ligando do celular, ela atende, meio grogue. Diz que acabou de voltar do Miguel Couto onde fez uma lavagem, depois de tomar cinco cartelas. Sua voz é calma. Ela está bem.

Dia seguinte passamos juntas, conversando sobre tudo. Ela me mostra uma pequena história que está escrevendo, um quase poema, lindíssimo, pra crianças. Após um tempo, devidamente medicada, me deixa, já absorta no computador. Volto então para a minha vida, agora melhor do que antes. Ela sem querer, também me salvou. E no meu entender, nunca quis de verdade morrer. Só precisava de provas de amor.

Passei a semana seguinte ruminando. À luz da nossa amizade, o arpoador jamais será o mesmo. O nosso melodrama revirou imagens e lembranças de tal maneira que um final de semana inteiro se fez necessário a fim de ordenar as idéias, afinar os ouvidos e acalmar o coração. As mensagens vieram através de um filme, como sempre acontece. Um filme que assisti, há alguns anos atrás, chamado Aniversário de Casamento, de Alan Cumming e Jennifer Jason Leigh.

Nele há uma cena inesquecível onde duas mulheres conversam sob o efeito de uma dose de ecstasy. Lá para as tantas, uma delas, a que já é mãe, desesperada, tenta convencer a amiga à não ter filhos: "Você nunca mais vai poder tomar um punhado de Percodam. Nunca vai poder cortar os pulsos. Nunca vai poder se matar se tiver filhos. Os filhos tiram essa opção", diz a amiga, lembrando que a outra tinha tentado se matar no último verão.

Coincidentemente ou não me dei conta de que esse tinha sido o argumento utilizado por mim para convencer a minha amiga a desistir da sua intenção. Apesar dela não ter filhos, eu tenho, e é claro, minha idéia era deslocar sua atenção, ao perceber a fragilidade da minha situação, desesperada por não ter sequer essa opção; eu estaria condenada a viver mesmo sem querer.

Graças, a minha amiga é daquelas que jamais perde a piada, mesmo ao pé da cova, e isso é um sinal de saúde, pois escolhemos - como Woody Allen - a tragédia do humor. Como Melinda, Melinda, nossas conversas cabem muito bem nas nossas vidas. Vidas que são tão ricas experiências, que fazem do cinema e da música a tela onde podemos nos ver e nos expressar, num êxtase que é realmente bom. Bom como provas de amor.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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