Caleidoscópica
Detalhes Tão Pequenos de Nós Dois

por Dulce Quental
12/09/07


Continuo por aqui, e por aqui, hoje, ainda é sábado. Por estranho acaso ainda resisto a fluência do tempo, dia a dia, um passo de cada vez, e as peças do quebra cabeça pouco a pouco vão se juntando. Você não desiste de mim, pra não desistir de você; eu não desisto de você, pra não desistir de mim - há alguma coisa entre nós que não quer calar - e assim continuamos a nos falar. Um diálogo lento, nem sempre linear, porém continuamos.

Por que, me pergunto, agora que temos o mundo lá fora a nos esperar? Temos tantos outros encontros pra acontecer. O que você ainda espera que eu possa te oferecer?

"Obrigado por não desistir de mim", ele fala, no meio da canção que estamos fazendo. "Você é uma parceira muito especial". E continuamos a remover as pedras do caminho até que não haja mais caminho pra seguir e a canção fale por si. "Daqui não posso seguir", respondo. "Não consigo enxergar direito. Ando vendo tudo embaçado depois da conjuntivite que me atacou os olhos."

"Já não sabemos onde está o outro, e onde estamos nós", ele diz, "só sei que, às vezes, preciso me defender de você e da sua intensidade; e da intimidade que você tem com as palavras. Talvez seja o modo que encontrei de organizar a minha resistência. De manter a minha integridade. Você é forte demais."

"Seria preciso haver uma identidade única e fixa para que pudéssemos capturar o desejo e falar o que ele é", eu respondo, "mas o desejo nunca está aonde podemos encontrá-lo. É da natureza do desejo ser fluido e inconstante, assim como a identidade."

"Por favor, preciso que você me ajude, estou perdidamente apaixonado por alguém que eu não sei se existe."

"Como eu posso te ajudar? Eu não sei, você precisa me dizer."

"Eu bem que tento, mas você é muito susceptível a tudo, parece que não tem pele, parece que vive em carne viva."

"Criar expectativas é a pior coisa possível. Se você espera demais de alguém ou de alguma coisa, se você se apega a uma idéia ou a um desejo, cedo ou tarde vai se decepcionar. Por isso, nada dá certo. O desejo é como uma criança teimosa. Ele não quer ser capturado, preso. Ele quer ser livre para acontecer, para brincar, para existir sem amarras.Eu por exemplo, não tenho nenhuma tendência ao vicio.Não bebo, não fumo, não me relaciono, não me apego a nada. No entanto, sofro como um condenado. Por tentar controlar tudo em mim, por tentar ser perfeito, por julgar o mundo à minha semelhança.Mas Maria Luiza, ao contrário de mim, se vicia em tudo; trabalho, sexo, álcool; tem que se policiar, pra não se apegar demais a nada; se vacilar, qualquer cachorro que passar pela rua ela leva pra casa. Já adotou um gato e um menino de rua. Ela leva o mundo pra casa. Não controla nada. Não sabe se proteger.”

"Eu não sei pra que; não sei onde; não sei como; só sei que quando o desejo pinta, eu penso nele, e só falto enlouquecer, pensando se ele também pensa em mim do mesmo modo".

"Que modo é esse menina?"

"Ora, de todos os modos possíveis. Do modo como eu te descrevi na canção, como um espelho".

"Ah! O lance do espelho, do "A Bela no Palco", aquele filme que você me falou."

"Uma das cenas mais bonitas entre um homem e uma mulher na cama. A brincadeira entre os papeis sexuais. O cara é um ator gay que nunca transou com uma mulher e a mulher é uma atriz que nunca transou com ninguém. E aí eles brincam de alternarem os papeis sexuais. Tem horas que ela é o homem e ele a mulher. Tem horas que os dois são duas mulheres e vice-versa".

"Mas e aí?"

"E aí, que é preciso ter coragem pra viver. É preciso ter coragem pra se relacionar. Não é fácil. A sexualidade é uma parte do desejo que é cheia de espinhos, de portas secretas. É preciso ter coragem e confiança pra mergulhar nos seus mares, sem cair na armadilha dos papeis sexuais estagnados, que aprisionam a sexualidade, prometendo mundos e fundos mas só trazendo desilusão."

"Eu não entendo do que você está falando?"

"Estou falando que se você persegue a perfeição. Se você idealiza a forma. Se você não aceita o processo de busca, de idas e vindas, de progresso e retrocesso que toda busca contem, você não tem como usufruir, nem escutar, nem compor uma canção. Ela é aberta a muitos significados que você, a principio, não entende, ou não consegue controlar, porque está mais preocupado com o resultado do que com o processo. Ao querer cortar as ervas daninhas, talvez, você esteja cortando a alma da canção. O erro não tem a menor importância. A repetição tira a venda dos olhos. A repetição das escalas musicais, dos movimentos dos corpos, com seus erros e desacertos, enfim, o processo é o mais importante, entende?"

"Vem cá, do que você está falando ? De sexo ou de composição?"

"O que você acha?"

"Acho que você está falando de composição pra falar de sexo."

"Sim, mas e você, do que você está falando?"

"Eu estou falando de sexo pra falar de composição."

"Então estamos juntos."

"Estamos."

"Onde está, então, a resistência agora?"

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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08 - As Dores do Crescimento
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