Caleidoscópica
Saudades de Dylan e Caetano

por Dulce Quental
29/06/06


Uma revolta silenciosa como ondas numa praia vazia remoendo por dentro na ultima tarde do último dia do ano. O tempo é um convenção que fingimos não existir, como se houvesse algo ou alguém a nos guiar. Faz tempo que não vejo a luz dos faróis com seus canhões. Poetas, menestréis costumavam nos iluminar como sóis na era da razão. Mas agora que estamos distantes da civilização nem seus sinais conseguimos distinguir. É preciso rodar o DVD, mergulhar nas páginas de um velho livro e se tiver sorte, quem sabe, esbarrar por azar com algum anjo perdido nos salões do entertainment, para se dar conta de que há algo podre no reino da Dinamarca ou, melhor dizendo, os velhos cawboys estão fazendo falta.

Foi o que senti ao ver o documentário No Direction Home, de Scorsese sobre Bob Dylan. Ou quando encontrei com Caetano nos salões do Copa. Saudade. Saudade não só das canções que eles ainda não compuseram. Mas saudade do tempo que era possível fazer canções inesquecíveis, arrebatadoras. Do tempo em que havia uma esperança inocente alimentando o nosso presente. Sim, estou melancólica. Como não estar? Quais as perspectivas das coisas melhorarem para milhões de brasileiros e humanos como eu? Será que é essa a tal idade da maturidade que tanto me falaram, um gosto de desencanto a medida quer a vida avança e perdemos as ilusões?

Acreditei toda a minha vida na arte como uma forma de redenção. Para quem não tinha nada, esse era o paraíso na terra, a possibilidade de se criar e se viver uma vida própria, fora das convenções sociais. A possibilidade de transcendência, incluindo aí, a da própria realidade material. Mas vejo agora, mais velha, que a utopia da arte está ligada a um idealismo próprio da juventude, quando ainda não sentimos as ferroadas da vida e estamos abertos a todas as possibilidades. Quando ainda somos uma promessa de felicidade.

Na arte não deveria haver concessão. Arte deveria ser o espaço para manifestação do que há de mais puro, autêntico e genuíno em cada um de nos. Mas o fato é que quando passamos para a era moderna, e a arte se reproduziu em milhares de reproduções, perdemos o que nela havia de único, ganhando em troca muito dinheiro. A arte passou a ter um valor. De artesanal passou a ser produzida em escala industrial. Não demorou para as massas assumirem o lugar dos artistas. Para que artistas se temos simulacros, próteses, cópias, imagens e sub-produtos parecidos com o original?

Arte é utopia. Desejo de absoluto. Onipotência criadora em centelhas criativas. Artistas são deuses, iluminam a escuridão das consciências do mundo. Vejam as vaias que Dylan levou quando dava ao seu público o melhor de si. Ouçam o silêncio que ecoa entre a sua juventude e os tempos atuais. Parece que não houve voz além da sua. Assim como não há, para mim, voz mais doce do que a de Caetano, em quase um século de música.

É queridos, melhor é parar de fazer análise. Como dizia Cazuza, estou pagando a conta do analista pra nunca mais saber quem eu sou.

Ps. Tive que espremer gotas de lágrimas do meu sangue congelado a fim de escrever essas malditas linhas, antes da ressaca final. Me desculpem a insensatez.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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