Caleidoscópica
Palavras Vivas Em Sentimentos de Pedra

por Dulce Quental
28/08/06


"Valeu Pai!", as palavras vararam o céu rompendo o silêncio antes abafado pelo cerimonial, e levando com ele o cheiro das flores mortas e os milhares de pensamentos que me distanciavam dali. Numa manifestação espontânea e original, quando acontece do sentimento romper a camisa de força da convenção, o grito vazou pela cortina de ar petrificado, atingindo a minha mente em pleno vôo, e tocando o meu corpo em estado de total sonambulismo.

É como eu me encontrava naquela tarde, seguindo o cortejo, depois de deixar pra trás a maior parte dos meus familiares. Por que resolvi romper a fronteira que separava a capela, do jardim de pedra mármore, não sei. Eu conversava com uma tia e como a conversa se desenrolava de modo interessante, não quis interromper o fluxo do destino que ali se apresentava. Acabei atrás da coroa de flores, que parecia esperar por mim sempre que eu me atrasava.

Finalmente o cortejo parou, e os poucos amigos se ajeitaram ao redor do padre e do homenageado, lutando contra toda sorte de mosquitos, oriundos diretamente, imaginasse bem de onde. Não sei exatamente quanto tempo levou desse instante até o momento em que o meu coração, atingido pelas palavras de um dos filhos do falecido, quebrou. Acho que a eternidade de uma vida inteira, até então represada, transbordou, revelando a imensidão de sentimentos que até então submergiam. Ainda não chegara a minha vez, mas um dia certamente chegaria.

Agora era a hora do vovô de suspensórios e barriga protuberante, o pai de coração errante, o marido generoso e sempre atento; agora chegara a hora da vida interrompida, atropelada em plena Ipanema, na esquina onde Vinicius encontrou Tom, onde passou a garota que a canção eternizou, onde eu passo todas as manhãs pra caminhar, em direção a vida que ainda está a me esperar.

Ninguém chorou, ninguém se descabelou. Ali naquele latifúndio, que um dia há de me caber, só havia eu. Eu que quero sempre conhecer as fronteiras. Eu que tenho sempre que ir até o final. Eu que precisei cruzar aquele portal pra encontrar o céu no inferno, confrontando flores mortas pra encontrar palavras vivas em sentimento de pedra.

Eu não conheci aquele homem. Nunca tive uma conversa mais próxima com ele. No entanto, nessa tarde, compartilhei um dos momentos mais íntimos da sua vida, comparável apenas ao dia do seu nascimento.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


Leia as colunas anteriores:
01 - Em Paris, Cancun ou Rio, a revolução somos nós!
02 - O Pensador Independente
03 - Pra Falar de Cinema
04 - Um Fim de Semana nos Anos 80
05 - Patrulhas da contra-cultura
06 - Por que gostamos de Woody Allen
07 - Cinema, morte, êxtase, provas de amor
08 - As Dores do Crescimento
09 - Desejos de Mulher
10 - Os Sonhadores
11 - Humano, Demasiado Humano!
12 - Como se renovar sem se tornar cinza?
13 - Se até o king-kong me entende por que os homens não?
14 - "2046" - Overdose de ficção e realidade
15 - A Voz da Chuva
16 - O Ponto Final de Woody Allen
17 - Polaroides Frias
18 - Confissões de Divã
19 - Downloadiar ou não, eis a questão?
20 - Ideologia, não quero uma pra viver!
21 - Uma Impossibilidade Possível
22 - Educação Sentimental
23 - Um Gato Aos Pés do Rio
24 - Saudades de Dylan e Caetano
25 - Guerrilha no Harém
26 - Como Caem os Amores