Caleidoscópica
Política Voz

por Dulce Quental
23/03/07


O desejo está à solta. Nos meus sonhos anda tomando formas das mais variadas. Procuro observar sem julgar nem intervir tentando com isso entender o que se move por trás dos gestos às vezes contidos ou desinibidos demais; pois nada é natural quando se trata de expressar desejos que não são pautados no discurso normalizante.

É preciso um quê de coragem para levar à vida assim sem respostas prontas ou fórmulas perfeitas; buscando soluções diante de cada nova situação pautada apenas na consciência da singularidade de cada momento. Nesse sentido a viagem dos relacionamentos toma outra dimensão. As diferenças dão o norte, e porque não, o corte dentro da linha de fuga do desejo, pois é preciso que algo flua entre dois corpos em movimento, pois eles nunca estarão no mesmo lugar, ao mesmo tempo, a não ser por alguns instantes. Um instante de dois.

Utopia; impossibilidade; artifício; poesia; música; tudo isso e muito mais; pois só haverá lugar para o desejo se houver espaço para alguém além de nós mesmos; numa política voz que exista para desconstruir a linguagem/imagem de um mundo ideal, repetitivo e excludente; pois nesse mundo nada que não seja "normal", "igual", "padrão", terá o direito de existir.

Nesse mundo narcíseo, ditado pelo gosto médio da mídia de massas, como se destacar? Parece que a maioria das pessoas persegue o ideal de ser igual, na esperança de que atingindo um certo padrão de desempenho conseguirá um lugar ao sol. Nesse sentido, anular em si próprio todo o vestígio do tempo e da história - trajetória familiar, perda, luto, estranhamento, erro, desencontro, improvisação, vazio; traços que fazem de cada um de nós e das nossas trajetórias, experiências únicas - é um passo imprescindível para se alcançar o senso comum.

Nessa lógica do mundo e do viver, o estranho que é o outro jamais caberá; pois o outro, que também somos ou um dia fomos, também desaparece; pois tudo já está pronto e por isso já foi dito; nada nunca terá o direito de mudar; nada nunca caberá; pois o circulo se fecha em si; não há processo, só resultados.

Viver num mundo assim não me interessa. Não há a menor possibilidade de eu vir a respirar num universo onde tudo já é. Onde as respostas são sempre as mesmas. Onde não há riscos e por isso responsabilidades.

Para se viver no mundo hoje é preciso criar alguma espécie de resistência. Acredito que essa resistência passará mais por um movimento de radicalização das trajetórias e soberanias de cada individuo do que na possível adesão a um ideal comum; poder, governo, família. É preciso criar todos os dias formas de se relacionar com as pessoas em instâncias, situações e espaços diferentes; virtuais; pessoais, profissionais; que estão em mobilidade permanente.

Novos diálogos para novos romances; um jeito de fazer o corpo se aproximar, sem endurecer; sem clichê. Voltaremos a usar de novo sinais de fogo? Longos silêncios serão necessários para escutarmos uns aos outros? Difícil? Porém não impossível. Aceitar o desamparo da vida sem cair na desilusão ou no desalento é um desafio pra poucos; pois o mundo em que crescemos, com os valores que aprendemos; a civilização que costumávamos acreditar, desabou; não existe mais.

Não há cartilhas, nem dicionário a seguir. O melhor a fazer é desenvolver uma atenção flutuante; com um ouvido atento para escutar, observar, questionar e interferir sempre que necessário. É preciso saber surfar as boas ondas, aproveitar as ruins, e mergulhar fundo, sempre que necessário. Viver hoje se tornou uma missão quase impossível. A inconsciência humana chegou ao limite do insustentável. A barbárie se instalou em todas as suas instancias. A violência está na ordem do dia. As cadeias estão cheias, as pessoas se drogam cada vez mais para não explodir. A pulsão de morte do mundo destruiu o humanismo como nós o concebemos. Cabe agora ao nosso desejo de vida construir um outro mundo que inclua alguma justiça humana; alguma razão perdida em algum sentido embotado; pela pulsão de vida que a herança do erotismo contido no humano nos herdou teremos que ser todos de alguma forma artistas.

É preciso romper velhas relações de produção de afeto. Relações indignas porque submissas a uma ordem de poder que não respeita as diferenças; de sexo, desejo, educação, religião, discurso; cultura.

Diante da solidão contida em cada um de nós teremos que construir um novo mapa de ação. Qual será ele? Que me respondam vocês. Eu quero escutar. E estou também falando. Quando começarei de novo a cantar?

Obs: Saudades do meu amigo Jorge Salomão e sua "Política Voz". Segue abaixo uma parceria dele e de Frejat, gravada pelo Barão Vermelho.

Política Voz
(Frejat e Jorge Salomão)

Eu não sou o mudo balbuciando querendo falar
Eu sou a voz do outro que há dentro de mim
Guardada, falante, querendo arrasar
Como teu castelo de areia
Que é só soprar, soprar

Soprar, soprar e ver tudo voar

Eu não sou a porca que não quer atarraxar
Nem a luva que não quis na sua mão entrar
Eu sou a voz que quer apertar o cerco e explodir
Toda espécie de veneno chamado caretice
E expulsar do ar, do ar
A nuvem negra que só quer perturbar

Soprar, soprar e ver tudo voar

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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