Caleidoscópica
Sobre O Ladrão De Fogo E O Mercado De Ilusões

por Dulce Quental
04/12/07


A raiva é um mapa; uma chama oculta. Sempre que ela tende a desaparecer, os sintomas começam a estourar. É uma forma que o corpo encontra de se manifestar. De reconhecer o abuso. A raiva costuma ter uma conotação negativa pois ameaça explodir em violência; e violência deve ser sempre controlada para que a ordem social seja mantida. Mas pode existir violência maior do negar ao próprio corpo aquilo que não quer calar?

Raiva gera anticorpos. Produz energia. Tem voltagem. Adoecemos quando não conseguimos localizar e expressar a nossa raiva. Seja porque temos culpa demais, por sentir o que achamos que ninguém sente. Seja porque não sentimos, o que achamos que temos que sentir. Por ir, por ficar. Por falar, por não falar.
Enfim, culpa é um pé no saco!

Na verdade, me dei conta de que nada parece ser o que é. E quando me dei conta disso, pintou a culpa. Será que só eu vejo o que ninguém vê? Se de fato isso acontece, então, o que eu devo fazer? Silenciar para o bem de todos?

Há hipocrisia demais no mundo das relações. Tendemos sempre a escolher o caminho mais confortável. Recentemente, lendo alguns trechos do diário da escritora americana Susan Sontag, me dei conta da sua admirável coragem. Quem mais no século XX explorou os limites e as contradições inerentes à própria genialidade?

Há muita culpa recalcada por se sentir potente, Nietzche já havia explorado esse tema ao falar da ditadura dos fracos, aqueles que conseguem derrubar gigantes com estratégias de eternas vitimas, pois para os fortes, muitas vezes é preciso compensar a culpa pelo próprio sucesso produzindo fracassos e a rejeição dos outros. Quando se é feio, narigudo, ou se sofreu com uma infância pobre, é fácil se dar o direito de não ser medíocre. Mas quando se tem tudo a favor, o que fazer?

É preciso errar e errar, milhões de vezes fracassar, para expurgar todo sentimento e garantia de felicidade. É preciso tornar tudo mais difícil para se sentir igual e merecedor do próprio talento. Como diz Sontag, há duas maneiras de ser, um santo ou um ladrão. Um compensa o outro. Desenvolvemos relações para satisfazer principalmente um ou outro. Desenvolvemos "o idiota" para compensar os outros por sermos "o gênio". Precisamos inventar uma causa para o fracasso e a rejeição dos outros.

Eu inventei tantas desculpas e me meti em tanta confusão que minha criatividade para o fracasso parece estar secando. Será que estou pronta de novo para a insustentável leveza do sucesso e sua fragilidade, agora que tudo parece ter se tornado mais difícil? Terei coragem de abandonar o silencio da sombra e a água fresca do riacho em que me refugiei? De repente, o que era confortável deixa de ser pois a burrice é imperial e a corte clama por mentiras sinceras. Estará na hora do ladrão atacar de novo o mercado de ilusões? O que vocês acham, meus doces cidadãos, devo me jogar de novo às feras e garantir o meu pedaço nesse latifúndio; ou pagar o preço de ser aquela que desnudará o rei, pisando no seu calo, pra não calar diante da barbárie dessa Roma em que vivemos?

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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