Ian McCulloch - O Homem-Coelho em seu Labirinto

por Jardel Sebba
Fotos de Alexandre Marchetti
Outubro de 2001


Enquanto a revista Rock Press não chega as bancas com o dossiê S&Y da passagem de Ian McCulloch por São Paulo, o leitor desta revista cultural pode se deliciar com o longo bate papo que o jornalista Jardel Sebba teve com o vocalista dos Bunnymen. Jardel é editor da revista VIP (a revista nacional mais bacana e divertida da atualidade) e esta entrevista foi publicada em sua coluna Jukebox no site da revista Super Interessante, e cedida para o S&Y, com exclusividade.


Ele é conterrâneo de Lennon e McCartney, mas queria mesmo ser Lou Reed. Depois de uma década gloriosa à frente do Echo and the Bunnymen, nos anos 80, Ian McCulloch encarou um longo período de ostracismo longe da banda, até um bem-sucedido comeback, há quatro anos. E um excelente disco novo, Flowers, lançado este ano. A seguir, o homem responsável por canções como The Killing Moon e Nocturnal Me fala, numa conversa exclusiva, sobre futebol, bandas novas, rock inglês, anos 80, covers, Smiths, Radiohead e Beatles.

Jardel Sebba

Como alguém cresce em Liverpool no fim dos anos 60/começo dos 70, monta um quarteto e ele não soa como Beatles? O Echo and the Bunnymen é a melhor banda de Liverpool ou isso é só uma provocação aos beatlemaníacos?
Há um foco na produção musical da cidade por causa dos Beatles e dos anos 60. Mas no fim dos anos 70, quando começamos a tocar, eu tinha apenas uma vaga lembrança deles em Liverpool, dos meus anos de infância. Claro que ainda há na cidade, e sempre vai existir, o culto ao Cavern Club e a outros lugares que remetem aos Beatles, mas eles deixaram a cidade muito cedo. Quando eu tinha nove, dez anos, a imagem do John Lennon já estava totalmente associada a Nova Iorque. O fato de estar numa banda, pelo menos entre a minha turma, quase todo mundo vindo da classe operária, tinha menos a ver com Beatles e mais com a vida em si, com o futebol, com ter algo para passar o tempo. Quanto a sermos os melhores, acho que somos, na verdade, a banda mais bonita que já saiu de lá (risos).

Liverpool ainda tem um papel determinante para a banda e para você?
Sim, muito. Mesmo quando a banda toda se mudou para lá, nos anos 80, eu era o único que realmente vinha do centro da cidade, e continuo morando lá. Foi em Liverpool que eu desenvolvi meu senso de humor e, principalmente, o sentido de pertencer a um lugar.

A volta do Echo and the Bunnymen teve mais a ver com a vontade da banda em mostrar o que ainda podia fazer ou com a pobreza do cenário musical britânico da época?
Acho que era o momento certo de voltar, acima de tudo, porque me senti perdido sem os Bunnymen. Demorei oito ou nove anos para perceber que eu era e precisava continuar sendo o cantor do Echo and the Bunnymen, mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas confesso que ficava com mais vontade ainda de voltar quando via o Liam Gallagher, do Oasis, com aquele jeitão, aquela verborragia, aquela ousadia, tudo roubado do Echo and the Bunnymen. Mas eu adoro ele, é um garoto que tem uma atitude fantástica, agitado, vibrante. E quando nos conhecemos, ele foi bastante gentil. Gosto muito dessa inquietação dele.

Seu longo hiato fora dos Bunnymen durou quase toda a década de 90. O que despertou seu interesse musical nesse período?
Do movimento grunge, só gostei do Nirvana, odeio Pearl Jam. Quando a cena britpop ressurgiu nos anos 90, havia muito lixo, tipo Echobelly, Lush. Eu odiava aquela coisa shoegazer, quase tanto quanto odiava a cena gótica na década anterior. O Andrew Eldritch (líder do Sisters of Mercy) andou falando coisas legais sobre mim, eu o respeito, mas não consigo gostar daquele tom de voz gutural. Onde está a piada? Parece fake. O Nirvana foi a única banda da qual eu comprei discos nessa década. Na Inglaterra, eu gosto do Blur e do espírito rock'n'roll do Oasis.

Você se arrepende de algum dos projetos e discos que produziu durante o período fora do Echo?
Não me arrependo de nada. Na verdade, se pudesse voltar no tempo, não escreveria uma canção como The Puppet (single de 80). É uma bobagem, sei que tem muita gente que gosta, mas eu odeio The Puppet. Amo Candleland (o primeiro disco solo, de 89), e curti muito fazer Mysterio (o segundo disco solo, de 92), na época. Olhando para trás, talvez eu devesse ter gravado Candleland sem acabar com o Echo and the Bunnymen. Na época, nos achávamos muito importantes. Éramos, e continuamos sendo, muito importantes, mas não era uma questão de vida ou morte. E na época havia aquela idéia megalômana de ter que anunciar ao mundo em tom solene que os Bunnymen estavam se separando. O New Order, por exemplo, nunca anunciou sua separação, e todo mundo sabe que eles estiveram de fato separados durante esses anos sem gravar.


Flowers
foi considerado a verdadeira volta dos Bunnymen. Os outros dois discos, Evergreen (97) e What Are You Going To Do With Your Life (99), são obras subestimadas ou são fracos mesmo?
Subestimadas, definitivamente. What Are You... é o meu segundo disco preferido em toda a discografia dos Bunnymen. Aquelas canções significam muito para mim, enquanto uma música como With a Hip (do álbum Heaven Up Here, de 1981) é só uma piada, embora seja uma ótima piada.

Se esse é o segundo, Ocean Rain (84) deve ser o primeiro, certo?

Sim, Ocean Rain ainda é o meu disco favorito. Ele soa diferente, e boa parte disso se deve ao fato de termos gravado em Paris. A fase entre 1980 e 1983 trouxe uma identidade muito européia para nós. Apesar da influência de Velvet Underground e de muito do que vinha da América, não éramos o Simple Minds, não usávamos chapéu de caubói ou coisas do tipo. Éramos europeus na essência, na maneira de ser. Eu gostava de Jacques Brel, da fase "thin white duke" do David Bowie. Nessa época, rodamos por vários cantos do continente, principalmente França e Holanda, passamos por milhares de pubs e lugares escondidos. Aprendemos quem realmente eram os Bunnymen naquele período, ficamos com esse "european vibe" enraizado na nossa formação. Por isso escolhi Paris para gravar Ocean Rain, sabia que tudo isso viria à tona. Lá eu quero gravar meu próximo disco solo. Em Paris ou em Bruxelas, que também me desperta esse espírito europeu dos Bunnymen. E, ao lado de tudo isso, nossa canção maior, na minha opinião, continua sendo a própria Ocean Rain.

E mesmo assim, você ainda acha possível fazer um disco melhor que Ocean Rain?
Sim, acho que meu próximo disco solo vai ser melhor. Deve sair em maio ou junho, preciso terminá-lo primeiro. Não terá nada de solos de guitarra, só pianos, e a minha voz à frente da banda.

Você disse que não ajudou a selecionar as canções da recém-lançada caixa Crystal Days por não agüentar mais ouvir os velhos hits. Você não ouve Echo and the Bunnymen em casa?
Quando estamos lançando um disco novo eu o escuto o tempo todo, para gravar as canções e sentir o clima. Mas não ponho nenhum dos nossos discos antigos para tocar em casa. Não gosto da minha voz no começo da banda, prefiro ela agora.

Você ainda tem paciência para ouvir coisas novas? Existem grandes bandas na Inglaterra hoje?
Eu sinceramente não acho que existam grandes bandas vindo de qualquer lugar hoje em dia, não só da Inglaterra. A última grande coisa que surgiu foi o Radiohead fase OK Computer, e que continuou legal no Amnesiac. Uma vez estávamos em Chicago dirigindo à noite, passando por um rio, e alguém pôs OK Computer. Parecia combinar perfeitamente com o clima. Não que eu tenha saído correndo para comprá-lo, mas havia uma grande banda por trás desse disco.

Eu recentemente indiquei Turin Brakes, Elbow e Lowgold como boas novas entre seus compatriotas. Não te animam?
(Enfático) Eu não gosto de Turin Brakes! O Elbow tem uma cara meio prog-rock, e eu não conheço muito o Lowgold. Gosto bastante do Belle and Sebastian, gosto também do Travis, amo o The Man Who (disco do Travis lançado em 99). Mas é tudo meio "boys next door", Iggy Pop e Lou Reed continuam sendo minhas referências. São eles que fazem o que eu realmente amo ouvir.

E os Strokes, você ouviu? Gostou?
Eu ouvi falar deles, uma banda de Nova Iorque com o espírito CBGB, mas eu não ouvi o disco deles. O CBGB era muito melhor que o punk inglês. O punk inglês era mais explosivo, mais contundente, mas aquele clima de Nova Iorque em 75 era onde eu queria estar. Lembro de ter lido um artigo do Nick Kent no (semanário musical inglês) NME na época, e o texto começava com "Beat on the brat, beat on the brat, beat on the brat with a baseball bat..." Aquilo era fantástico! Eu estava começando a ir a pubs, tinha 15, 16 anos, tinha minha camiseta surrada, minha jaqueta. Queria parecer com a cena de Nova Iorque, assimilar aquela idéia de decadência. Quando ouvi pela primeira vez Ramones, Patti Smith, Beat on the Brat, me identifiquei na hora.

Você ouviu a versão do Pavement para Killing Moon? Gosta de versões dos outros para suas músicas?
Sim, eles tocaram a música para mim quando nos conhecemos, num hotel em Londres. Achei ok, tinha que dizer que gostei, mas é uma canção difícil de ser recriada. Ficou ok, no fim das contas. É sempre legal que uma banda cite você nas influências, fale sobre o peso do seu trabalho no deles. As bandas inglesas, por mais que a referência musical seja clara, nunca nos citam. Os Stone Roses, por exemplo, se diziam influenciados por Sly and The Family Stone. E havia uma enorme influência dos Bunnymen ali. O curioso do Pavement em particular foi a postura totalmente reverente que eles tiveram comigo quando conheci a banda. Exatamente como eu fiquei quando conheci o Leonard Cohen. Lembro que ele me deu dois telefones de contato, e eu nunca tive coragem de ligar. Tentei uma vez, há uns dois anos, para ver o que acontecia, mas num horário em que sabia que não ia acontecer nada. Nos encontramos duas vezes, uma em 1990 e outra em 1992. Na primeira, eu fiquei completamente impressionado em ver como ele foi legal comigo. Veio me ver em Los Angeles! Eu estava num quarto de hotel e o telefone tocou. Quando ouvi aquela voz rouca do outro lado, demorei a acreditar no que estava acontecendo.

Você citou os Stone Roses com um certo ressentimento. Aquela cena da "Madchester", do fim dos anos 80, devia muito ao Echo and the Bunnymen?
Sim, mas nós devemos muito ao Velvet Underground também, a diferença é que sempre fiz questão de dizer isso. Nos anos 80, eu sei que grande parte dessas bandas de Manchester estava na platéia dos nossos shows. Eu sei, por exemplo, que o Mani, dos Stone Roses, esteve no nosso primeiro show em Manchester. Sempre me pareceu um pouco estranho que nenhuma dessa bandas citasse a influência do Echo nos trabalhos deles.

Vocês dividiram espaço nos anos 80 com um grande número de bandas de Manchester (Smiths, New Order, Durutti Column, The Fall). Era difícil para o pessoal de Liverpool conviver com o de Manchester?
Sempre nos demos bem com todas as bandas daquela cidade, mas sempre mantendo nossas diferenças essenciais. Acho que, se o Echo and the Bunnymen fosse de Manchester, ele teria sido muito maior do que foi, por alguma razão que desconheço. As bandas que saíam de Liverpool na época em que a gente surgiu eram muito ruins, e nossa identificação sempre foi naturalmente alinhada com bandas como Joy Division, New Order e The Fall, que eu amo. Mesmo não havendo qualquer possibilidade de nos sentirmos como uma banda de Manchester.

Vocês sempre deixaram claro as influências do Echo tocando canções dos Stones, Doors, Velvet e Dylan nos shows. Existe alguma música que, por medo ou respeito, você nunca ousaria recriar?
Não sei... (depois de alguns minutos) Nenhuma canção parece intocável até que você tente fazê-la diferente. Hey, That's No Way To Say Goodbye, do Leonard Cohen, é uma canção maravilhosa, e eu senti que podia fazê-la de forma diferente (no disco-tributo I'm Your Fan). Acho que acertei mais em Lover, Lover, Lover (outra cover do Cohen, no álbum Mysterio). Pensando bem, acho que The Bewlay Brothers, do Bowie, é uma música na qual eu não ousaria mexer. É uma letra que eu não conseguiria cantar, é algo muito exclusivo do Bowie. E o Hunky Dory (álbum onde está a canção, de 71) é, possivelmente, um dos melhores discos da história.

Você gosta de comparar o seu trabalho em parceria com o guitarrista Will Sergeant no Echo com a dupla David Bowie-Mick Ronson. Você os conheceu pessoalmente?
O Bowie sim, mas não tive a oportunidade de conhecer Mick Ronson. Certamente, o melhor guitarrista que eu já ouvi na vida. Me sinto envergonhado porque, na medida em que o tempo passou, fiquei pensando em como adoraria tê-lo conhecido, ter tido a chance de mostrar para ele algumas canções minhas...

Ao mesmo tempo, você repudia qualquer possível comparação entre vocês dois e a dupla Morrissey-Marr. Você não gosta de Smiths?
Eu gosto de alguns singles dos Smiths, mas acho a voz do Morrissey chata. Leonard Cohen, por exemplo, não é um cantor excepcional, mas sua voz tem sentimento. Aquela coisa assim (geme de dor no ritmo de uma música dos Smiths) não é minha praia. Em 1983, um jornalista conhecido meu pediu para fazer uma entrevista conjunta comigo e com o Morrissey. Recusei, não queria dividir espaço com ninguém, muito menos com um cara que eu não fazia a menor idéia de quem fosse. Tanto insistiram que acabei cedendo, com a condição de que a entrevista fosse em Liverpool e a gente ficasse bêbado. Foi uma experiência terrível. O cara era vegetariano, cheio de frescura, e ainda pediu um refrigerante de cereja, porque também não bebia! E ele ainda pronunciava as palavras com uma empáfia insuportável, queria passar aquela imagem do jovem que havia lido Oscar Wilde e todos os livros já escritos na face da Terra. Eu acabei falando um monte de bobagens naquele dia para animar a conversa. Depois, o Morrissey me mandou aquele álbum com o soldado na capa (Meat is Murder) pelo correio com uma dedicatória que dizia: "Love, Morrissey". Eu nunca pus aquele disco para tocar. Meu toca-discos estava quebrado, e aquele me pareceu um bom motivo para não consertá-lo nunca mais. Essa coisa de "slap me on the patio" (verso de Reel Around the Fountain, dos Smiths) não combina comigo. Heaven Knows I'm Miserable Now, por exemplo, é uma canção legal, o problema é que ela já encheu o saco. Toca sem parar, sempre a mesma canção. Eles eram o tipo de rapazes que não gostavam de futebol, não jogavam futebol, viraram vegetarianos, não bebiam. Quando eles estouraram, eu fiquei assustado em ver como existia gente assim no mundo! (risos) Mas eu não tinha planos de me enturmar com o pessoal gay e virar um menino tímido, sentado sozinho no quarto pelo resto da vida, queria sair para aprender a jogar futebol, para brigar na rua, essas coisas.

Como amante do futebol, você tem acompanhado os recentes desastres da seleção brasileira?
Sim, até fiz uma piada sobre isso na coletiva de imprensa ontem. Vocês precisam entender que não têm o direito divino de ser o melhor time do mundo. Depois de Pelé e Zico, o Brasil não teve ninguém à altura. Se o time não é tão bom, talvez seja até melhor não ir à Copa. Deixar o mundo inteiro ver uma seleção brasileira dando vexame pode ser muito prejudicial para a imagem do futebol brasileiro.

E onde a Inglaterra está batendo uma bola mais redonda hoje, no futebol ou na música?
O futebol está muito melhor. O Liverpool melhorou muito, o Arsenal e o Leeds também, o Manchester United tem um grande time. Acho que todo o futebol inglês vive um grande momento, enquanto a maioria das bandas é uma porcaria. O que há são muitos grupos parecidos com o Coldplay e o Travis. Eu gosto de Yellow (música do Coldplay), o pessoal do Travis é gente boa e escreve boas canções, mas eles não são como o Iggy Pop ou o Jim Morrisson.

Jardel Sebba é editor da revista VIP e assina uma coluna bacana no site da revista Super Interessante, a Jukebox.

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