O CEL é o Limite
Stormy e Eu

por Carlos Eduardo Lima
15/07/06


Eu não lembro exatamente quando ouvi a primeira música de que gostei. Essas situações limítrofes, definidoras de caráter (música é, sim, definidora de caráter) são quase sempre envoltas em um fog de tempo e de passado distante. No meu caso é algo de que minha mãe se lembra bem, pois levou um belo pontapé na barriga, de dentro pra fora, quando ouviu determinado compacto simples, em algum mês do fim de 1969. Explico.

Nasci em 1970. Julho. Era a época do fim do Flower Power, do início do progressivo, do bittersweet, de artistas como James Taylor e Carly Simon. Entressafra. A música que estava no topo das paradas do mundo era In The Summertime, com Mungo Jerry, uma banda riponga inglesa que só fez esse sucesso em toda a sua existência. Minha mãe até gostava de Mungo Jerry, mas tinha um fraco por Johnny Rivers e Classics IV. Numa bela tarde de um dia qualquer, ela voltou de uma andança pelas ruas de Copacabana com dois compactos simples, adquiridos numa loja chamada Copadisco. Stormy, do Classics IV, e It's Too Late, de Johnny Rivers. Eram dois artistas menores da época, desprovidos de qualquer "atitude", muito mais pop-rock romântico e melódico do que qualquer outra coisa. Minha mãe era uma ouvinte de músicas aleatórias, egressa de turminha de bossa nova, meio sem dar qualquer importância exacerbada ao ato de ouvir música seriamente. Nada de Zombies, de Doors, de Janis Joplin, de Beatles ou Stones. Apesar da jovem Helena gostar dos fab four, naquela tarde ela queria ouvir Stormy à exaustão.

A melodia e a canção se casam como Romeu e Julieta, sem morte. É uma história triste de uma menina que tem seu humor comparado às mudanças do tempo, sendo que o recurso poético de comparar o sol com a felicidade e a chuva com a tristeza é usado o tempo todo na letra. E o fim do amor, uma tempestade, mas que torna a moça da canção a própria "stormy", ou seja, algo como "tempestuosa" ou uma outra palavra que meu inglês não me permite achar ou concluir com mais clareza ou propriedade. Aos primeiros acordes da canção, tocada num apartamento no Leme, uma espécie de feudo da tranqüilidade em Copacabana, Helena leva um chute bem aplicado em sua barriga ainda não muito proeminente. Ela se surpreende, se agita. Aproxima-se da caixa de som da eletrola Phillips. Outro chute. Sim, amigo leitor, era eu. Não posso, obviamente, lembrar o que eu pensava quando chutava a barriga de minha amada mãe, mas posso fantasiar, principalmente, que era uma tentativa de acompanhar o ritmo da música ou alguma reação ao som, ouvido pela primeira vez em forma de melodia...

Mesmo depois de nascer e ser embalado por várias canções de ninar, Stormy sempre foi assobiada, citada, cantada e sempre minha reação foi a abertura de um sorriso atávico. Esta história me foi contada há uns anos por minha mãe, num momento choroso de flashback da vida. Fiquei fascinado com o contexto e com a mera possibilidade de ter reagido a uma música enquanto feto mal acabado dentro de uma barriga. A simples perspectiva é sensacional. Talvez dessa ligação tão intrínseca e espontânea venham algumas implicâncias com o que aproveitadores e biltres fazem com a música, latu sensu. Ou com o que outros não menos infames impõem a ela por irresponsabilidade escrita, falada ou mtvisada. Na verdade, a alegoria de ouvir música desde o ventre é manifestação do inconsciente coletivo, pois, claro, quando estávamos lá dentro, o mundo aqui fora nos afetava de todas as formas, mesmo as mudanças de humor nos eram perceptíveis, via mãe.

Creio piamente que Stormy, que é, por definição, o contrario de Sunny, outra música da época, é uma música que me acompanhará a vida inteira. Talvez eu sugira, como quem não quer nada, à senhora CEL, que a ouça, apenas para ver se a história se repetirá. Ou não. Talvez deixe a vida seguir seu rumo musical pré-determinado. Mas que o momentum do fim de 1969, no apartamento do Leme seja, sempre, verdade absoluta, que assalta os sentidos 36 anos depois, quando, por acaso controlado, a mesma música surge em meus ouvidos dentre as milhares possíveis.

Encontre sua música, amigo leitor. Se não houver algum registro tão antigo, pense naquela que você poderia chamar de seu hino. Cante-a alto nas festas, assovie baixinho apenas pra você. Dê para a sua namorada como sinal de amor eterno, como parte de seu próprio ser. Estampe-a no seu estandarte. E procure não ser tão dramático, como este emocionado escriba aqui, que às vezes exagera na emoção canceriana nos escritos.

Carlos Eduardo Lima, 36 anos, é fanático por silly love songs desde muito, muito tempo. Contato: cel@rockpress.com.br