'First Impressions of Earth', do Strokes
por Marcelo Costa
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14/02/2006

"Eles só querem que você escreva elogios sobre eles, que os chame de gênios, e vão estragar o rock e sufocar o que tanto amamos nele. Eles tentam comprar respeitabilidade para uma forma que é gloriosamente imbecil. E no dia que deixar de ser imbecil deixará de ser real. Aí se torna a indústria do 'cool'. E 99% do que se diz rock hoje em dia, o mais necessário é o silêncio". Lester Bangs, em 1973.

O rock, desde quando surgiu, foi motivo de piada no meio musical. Desde que Sam Phillips abriu sua lojinha, e levou o rock às multidões, e já se vão mais de 50 e tantos anos, o rock sempre foi um gênero menor, até popular, mas de menor valor. Música, com M maiúsculo, é música clássica. As óperas, as sinfonias, o jazz, o soul: tudo isso sempre foi muito mais importante - musicalmente falando - do que o rock, porque o rock sempre foi algo juvenil, tosco, sujo, indecente, mau-caráter e vagabundo. Coisa de moleque desocupado. E não era só roqueiro brasileiro que tinha cara de bandido. O rock sempre foi coisa de bandido.

Porém, três caras deram o pontapé inicial para que o rock começasse a ser respeitado como forma de arte: Brian Wilson, John Lennon e Paul McCartney. Quem viu o documentário Beautiful Dreamer: Brian Wilson and the Story of Smile pôde conferir o maestro Leonard Bernstein, um dos nomes mais importantes da música clássica norte-americana no século passado, rendendo imensos elogios em rede de TV aberta à Brian Wilson. Segundo o maestro, na época (1967), 95% da música pop era lixo. Porém, jovens como Brian Wilson (que tinha 26 anos) mostravam que havia como compor música popular com inteligência e alma.

Tudo isso aconteceu muito tempo atrás. Bangs, Lennon, Bernstein são nomes do passado. Após a vitória do capitalismo e a celebração do pós-modernismo, a humanidade foi induzida a aceitar que é muito melhor "consumir" do que "pensar". E a juventude embarcou nessa de cara-pintada, pares de tênis cujo preço podem alimentar famílias, apenas pela diversão. Modas do momento. A banalização dos adjetivos. A cada minuto, um gênio nasce para os seus quinze minutos de fama. O que o Strokes, combo nova-iorquino que chega ao seu terceiro disco com jeito de dinossauros (e a banda só têm quatro anos), têm a ver com isso? Tudo. Exatamente tudo.

A rigor, o Strokes é uma bandinha imbecil que alcançou a luz pop exatamente pela constante procura da mídia em colocar coroas em novos reis. Problema nenhum nisso. A mídia sempre foi manipulada pelas grandes corporações. A grande incógnita que este texto propõe é como o público, familiarizado que está com a Internet, pôde engolir tal engodo sem mastigar, se agora temos, na maioria das vezes, as notícias em primeira mão, descartando a mídia como lançadora de tendências? Como podemos ser joguetes, felizes marionetes de uma grande máquina, se agora podemos nós mesmos brincar de jogar?

Mais: muita gente, principalmente uma dezena de milhares de moleques que acredita que realmente conhece música, confunde crítica com gosto pessoal. Não são a mesma coisa, me desculpe desaponta-los. Pessoalmente, gosto de muitas coisas dos Strokes. Até coloco na pista quando estou discotecando. Tem clima, tem charme, tem boa vibe. Mas criticar não é apenas dizer se o produto em questão é bom ou não. É, acima de tudo, entender o que aquele produto representa para o mundo que estamos vivendo. Um disco, um filme, um livro são retratos que a sociedade imprime da época que está sendo vivida. Compreender o que isso representa seria a função da crítica, afinal, dizer se é legal ou não até a minha mãe - ou a minha sobrinha de sete anos - diz, com argumentos delas, que precisam ser respeitados no quesito gosto.

Dito tudo isto chegamos a Lester Bangs. O trecho que abre este texto foi retirado do filme Quase Famosos, em uma cena inclusa apenas na versão Directors Cut, em que Bangs tenta demover o jovem William Miller a desistir da carreira de jornalista. Bangs é extremamente certeiro. Assim como o maestro Leonard Bernstein. Embora em contraponto, uma seja antagônica a outra, ambas opiniões revelam o defeito e a virtude primeira do rock: ser lixoso. Bangs defende exatamente isso, que é o que condena Bernstein. Entre um e outro surge a industria do "cool", tentando vender como genial um punhado de artistas que não se diferenciam entre si, e mais parecem cópias vagabundas e de quinta categoria de uma época gloriosa da música pop.

Péra lá, nada a ver com nostalgia. O problema é aceitar como gênios artistas que malemá sabem escrever uma canção. E não que escrever uma boa canção seja algo obrigatório e relevante. O problema é exagerar nos adjetivos, transformar em mártir pessoas que não merecem este epíteto e cagar regras sem se atentar que simplesmente gostar não avaliza porcaria nenhuma. Toda vez que alguém diz que Strokes é uma banda excelente, me sinto comprando uma passagem para Fernando de Noronha e sendo levado para o meio de um tsunami no Pacifico. É simples assim. De tanta contar uma mentira ela será aceita como verdade. Cuidado.

Não é que Strokes não seja legal. Até é. Tem coisas boas ali, e First Impressions of Earth as exibe com extrema naturalidade: um vocalista de competência, talvez o melhor crooner desta nova geração. E um baixista que não se envergonha de saber três notas e mesmo assim carregar toda a banda (o ótimo single Juicebox comprova). De resto, só defeitos: um baterista que sabe pouco menos que o básico e dois guitarristas que juntos não fazem a vez de um, abusando da infantilidade na criação de riffs e na economia no uso de pedais de distorção e efeitos (e olha que este é o disco mais "barulhento" deles). No entanto, barulho, melodia, bons riffs, nada disso importa muito. Isso tudo está no pacote de ser lixoso. A maneira indigente de tocar música representada pelo Strokes é mais rock do que Audioslave, Metallica e Korn juntos. O problema todo é levar isso à sério demais. É querer tornar isso "cool". É cair na armadilha da indústria.

Assim como os dois álbuns anteriores, First Impressions of Earth é um disquinho que não traz nenhuma novidade, não avança, não incomoda, até induz ao sono em faixas como Killing Lies, On The Other Side, a primeira parte de 15 Minutes, Evening Sun e principalmente Ask Me Anything. Há boas canções, como a tríade de abertura - You Only Live Once, Juicebox e Heart in a Cage, mas no total, é só apenas pop rock tocado sem criatividade, compensado aqui e ali com um pouco de tesão, e que cansa. Deve ser bom de ouvir em dias de chuva, algumas músicas até soam legais na pista, e não incomodaria se tocasse no rádio. Só existem muitas bandas fazendo discos e músicas muito melhores que as de First Impressions of Earth.

Não há coisas a se descobrir no som do Strokes como há no Radiohead, no Flaming Lips, no Asian Dub Foundation, no Wilco, bandas relevantes que levam à música popular para novos territórios, que soam atemporais. Julian Casablancas não é Thom Yorke nem Jeff Tweedy, e talvez já tivesse se matado se fosse. Nem teria que ser: é preciso que existam ambos. O problema todo é quando se mistura um com outro como se todos fossem a mesma pessoa. Não são. Enquanto Radiohead e Wilco fazem algo mais, ahñ, artístico, o Strokes faz a música mais imbecil do mundo, seguindo na tradição aberta pela turma de Sam Phillips, e que consagrou o Ramones como ícone punk. Superestimar o Strokes é o perfeito retrato do mundo atual, que aceita como verdade qualquer mentirinha, por mais fajuta que seja. "Não pense. Dance. Compre. Cante. Faça parte". O mundo cada vez mais ao seu alcance. Belos sorrisos amarelos.

A imbecilidade roqueira é mais do que necessária. É obrigatória e vital. E o Strokes é um dos ícones do estilo. Além, uma canção chicletuda e deliciosamente idiota como Every Day I Love Less And Less, do Kaiser Chiefs, ou a excelente Can't Stand Me Now, do Libertines, cumprem a sua função de manter o rock vivo e respirando, e podem - e devem - ter respeitabilidade pelo que vão simbolizar daqui há dez, quinze, vinte anos. Quem vai prever? Isso, no entanto, não serve de prerrogativa para transformar imbecis em gênios. Citando André Forastieri - um dos poucos jornalistas brasileiros que mereceriam ter um livro com suas resenhas, textos e pensamentos sobre música - "cada um ouve o que bem entende e não há nada de errado em ouvir coisas antiquadas e conservadoras - contanto que você saiba que elas são assim". First Impressions of Earth é só um disquinho ordinário e mediano de uma bandinha imbecil que é levada à sério demais. Quer ouvir, ouça, mas saiba direitinho o que você está ouvindo. Nada de cair em armadilhas, ok.

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