Entrevista Capital Inicial - Fê Lemos
por Marcos Paulino
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Foto: Site Oficial
22/02/2006

Brasília era uma cidade ainda tinindo de nova em 1978, apenas 18 anos depois de sua fundação pelo presidente Juscelino Kubitschek. Natural, portanto, que seus moradores, muitos recém-chegados com suas famílias, procurassem se enturmar. Foi num desses grupos, que ficaria conhecido como Turma da Colina, que Renato Russo, Felipe Lemos e outros se reuniam para escutar punk rock, uma novidade na época. The Clash, Ramones e Sex Pistols foram algumas das bandas que inspiraram a criação do Aborto Elétrico, conjunto que representa a semente do rock que saiu da Capital para ganhar o País. A formação original trazia Renato, Felipe, o Fê, e André Pretórius, um africano. Mas foi só em janeiro de 1980, com o baixista Flávio, irmão de Fê, no lugar de André, que voltara à África do Sul, que o AE fez o seu primeiro "show".

Foi o primeiro de vários shows em bares, lanchonetes e nas calçadas, nos quais a molecada exibia um repertório que tinha Geração Coca-Cola, Tédio e Que País é Este?, entre outras. Em 81, viriam outras pérolas, como Fátima e Música Urbana. O guitarrista Ico Ouro Preto havia sido incorporado pela banda. Mas no ano seguinte Renato anuncia que sairia do AE, passando a se apresentar sozinho com o nome de Trovador Solitário.

Os outros três resolveram continuar tocando. No primeiro – e último – show sem Renato, na Universidade de Brasília, Ico não apareceu. Mas o ex-integrante estava na platéia e subiu ao palco para tocar com os amigos. Depois disso, como todo mundo sabe, o Aberto Elétrico daria origem a duas das bandas brasilienses de maior sucesso: Capital Inicial, formado por Fê e Flávio, e Legião Urbana, de Renato.

Essa história é relembrada no projeto MTV Especial Capital Inicial – Aborto Elétrico, lançado no final do ano passado. Das 18 músicas do CD, nove são inéditas, a maioria delas guardada apenas na memória de Fê e Flávio. Os músicos decidiram usar instrumentos da época para tornar a reprodução a mais próxima possível da original. Com a devida aprovação dos Manfredini, família de Renato Russo, os remanescentes do Aborto Elétrico acharam que finalmente era o momento de trazer à tona o repertório que influenciou tantas bandas.

Sobre o projeto, o S&Y teve a seguinte conversa com Fê Lemos.

Por que só agora o Capital Inicial resolveu lançar o repertório do AE?
Esta idéia nos acompanha há vários anos. Existia este repertório inédito, e eu sabia que ele seria gravado algum dia. O projeto tomou forma quando algumas condições que se mostravam necessárias surgiram. A família do Renato nos autorizou, dizendo que se alguém fosse gravar esse material deveria ser eu e o Flávio, já que, nas palavras do falecido senhor Renato Manfredini (pai de Renato Russo), ele se lembrava de ter visto eu e o Flávio carregando caixas e equipamento nas costas, junto com o Renato, para os shows do Aborto Elétrico. Precisávamos estar numa situação na nossa carreira onde tal projeto não pudesse ser taxado de oportunista. O Capital Inicial está na sua melhor fase, após dois discos de material inédito extremamente bem-sucedidos, com uma nova legião de fãs comparecendo aos shows e acompanhando a banda. A nossa gravadora precisava enxergar os riscos envolvidos num projeto dessa monta como positivos. O Capital Inicial estabeleceu um estilo, e gravar um disco de uma banda de punk rock poderia causar confusão entre os fãs e criar um constrangimento desnecessário a nossa carreira. A Sony-BMG abraçou o projeto e tivemos total liberdade artística para fazer o CD como julgávamos que devia ser feito. Enxergávamos esse projeto como o resgate de um capítulo importante da história do rock brasileiro, e, para tanto, acreditávamos que um documentário, onde a história do AE fosse contada, era essencial para dar um contexto ao disco e ao projeto. Quando a MTV se manifestou interessada no projeto, e, principalmente, nos termos em que nós o propusemos, concluímos que o momento de realizar o disco havia chegado. As músicas inéditas foram reinterpretadas pelo Capital Inicial a partir de fitas de ensaios do Aborto Elétrico que eu e o Flávio tínhamos, fitas K7 de 25 anos atrás. As letras foram retiradas das fitas, do caderno e de panfletos feitos pelo Renato à época. Parte desse material gráfico está no livreto que acompanha o disco. Eu me lembro de cinco músicas que acabamos não gravando: O Que Eu Quero, Admirável Mundo Novo, Pão com Cola, Hey Menina e Metrópole, esta gravada pela Legião Urbana, com outra letra e arranjo. Existem mais algumas poucas músicas sem letra, mas não existe intenção de regravá-las.

O AE era uma banda de adolescentes. Você teve que se lembrar de sua época de adolescente para entrar no clima da gravação?
Olha, eu espero que inspire a garotada sim. Se eles perceberem que tudo que nós precisamos para mudar as nossas vidas, e assim mudando um país inteiro, foi acreditar no "faça você mesmo", o grande lema do punk rock, estaremos realizados, e este projeto mais do que justificado.

O que foi o mais bacana e o mais difícil na elaboração desse projeto?
O projetou levou seis meses. As reuniões com a família do Renato aconteceram em abril, foi tudo muito bom.

O Capital teve sucesso nos anos 80, depois sumiu e voltou nesta década para o grande auge de sua carreira. Como você analisa esse sobe e desce?
Foi o tempo do pré-boom do rock anos 80, tempos de inocência, de descoberta. Tempos de levar três meses para compor uma música... Tempos onde fazer um show era uma conquista tão difícil como escalar o Everest. Hoje muitas bandas se formam pensando no sucesso. Perdem o mais importante, que é se divertir fazendo rock. Naquela época, fazíamos canções pensando apenas no nosso prazer. Hoje canções são feitas pensando em carreiras, tocar no rádio, fãs, repercussão na mídia. Hoje existem milhares de músicos cheios de técnica e nenhuma criatividade. Naquela época, não sabíamos tocar, mas como fizemos canções bacanas!

E por falar nisso: quem são os fãs da banda hoje?
Aqueles mesmos dos anos 80 ou os filhos deles? Ou ambos?

Ambos.

A entrada do Yves Passarel na guitarra também contribuiu para o Capital dar essa remoçada? O Yves é um grande talento, está em sintonia total com a banda.

Após o sucesso baseado principalmente em canções mais antigas e regravações de hits, vocês pensam em novos álbuns de material exclusivamente inédito?
Claro. No momento eu recomendo Hotel Básico, meu primeiro CD solo. Esse CD é o resgate da minha carreira como compositor. Eu era o principal letrista do Capital Inicial no começo da nossa carreira e passei a compor quando descobri o computador como instrumento musical. Neste disco eu canto, pela primeira vez, uma versão de Jardim das Gueixas, música do Ciro Pessoa, ex-Titãs. Tenho a participação de convidadas especialíssimas, como Débora Blando, Talita da banda Motores e outras. Tenho a participação in memorian do grande Fejão, o mais brilhante músico de Brasília que já conheci, tocando baixo e guitarra em uma gravação feita em 1994. Se eu não falar no meu disco, quem vai falar? Mais informações em www.felemos.com.br.

Quais os próximos passos da banda?
A turnê começa em março, pelas capitais. Espero que Brasília seja a primeira.

Entrevista cedida pelo caderno PLUG do jornal Gazeta de Limeira


'MTV Especial: Aborto Elétrico', Capital Inicial
por Marcelo Costa
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Foto: Detalhe do e-card de divulgação
22/11/2005

Quer saber, mesmo: o som do disco é frouxo. Praticamente todas as músicas que já haviam sido lançadas oficialmente - ou pela Legião ou pelo Capital - e foram regravadas aqui são inferiores às versões originais. Dinho está milhares de quilômetros atrás de Renato Russo no quesito vocal. E a banda não precisava do selo MTV para avalizar o projeto. No entanto, Capital Inicial / Aborto Elétrico tem motivos de sobra para se fazer existir. Entre o oportunista e o oportuno, o Capital remexe no baú de tosquices candangas, joga na cara de toda uma geração que o País não mudou nada nos últimos 30 anos e dá sobrevida ao mito Renato Russo.

Antes de qualquer coisa é necessário colocar pingos em alguns is. Primeiro: os arranjos de todas as canções copiam fielmente os arranjos das versões originais dos tempos do Aborto Elétrico. Por exemplo: a sensacional Música Urbana, carro chefe da carreira do Capital Inicial lá por 1986, perdeu todo o charme do arranjo que o público conhecia para ser tocada como o Aborto Elétrico tocava. Isso, ao final, acabou vitimando várias canções no quesito comparação. É impossível ouvir Conexão Amazônica sem lembrar da poderosa versão da Legião Urbana. Só que ninguém pode dizer que o Capital Inicial "estragou" as músicas. Elas eram assim. Você é que não conhecia, amigo (a).

Segundo: Dinho segue a linha melodica vocal que Renato Russo tinha imprimido para todas as canções como se fosse um karaokê. Porém, a voz de Dinho é bastante inferior. Aliás, a carga descarregada pela voz do Renato salvava quase todas as suas músicas. Cantadas por um outro cara, algumas de suas canções soam deslocadas, caricatas. Estranho: Dinho já havia regravado uma canção antiga de Renato Russo alcançando um resultado sublime. Marcianos Invadem a Terra, do primeiro e único álbum solo de Dinho, é bastante superior as versões conhecidas na voz de Russo. Em Capital Inicial / Aborto Elétrico, no entanto, esse exemplo não funciona. Mesmo Ficção Cientifica, que ainda soa muito melhor que a versão registrada pelo Capital Inicial no pífio Você Não Precisa Entender (1989) é inferior à versão do Aborto Elétrico. Ficção Cientifica traz um dos versos mais fortes de Renato Russo em sua fase inicial: "Revolução em selvas tropicais / Raio Laser mata índios / Descoberta: o novo mundo envelheceu".

Terceiro: a gravadora vendeu a produção de Rafael Ramos como algo sensacional. Quer saber o pior: muita gente comprou. A produção é frouxa. O disco é limpinho, comportado, sem stress. Na minha concepção de som Aborto Elétrico, a produção teria que ter optado ou pela tosqueira do primeiro Raimundos (produzido com excelência por Carlos Eduardo Miranda) ou o peso sem tamanho do segundo do Raimundos (Lavô Tá Novo, produzido por Mark Deanley), que conseguiu soar encorpado sem abdicar do barulho. Em um paralelo atual, o som de Capital Inicial / Aborto Elétrico é tremendamente soporífero perto de Playback, avalanche de barulho que os gaúchos do Walverdes colocaram nas lojas na mesma semana que os candangos.

Bem, apesar de tudo isso, vale ouvir o disco? Vale. Essas são as canções da banda que acabou dando origem ao grupo mais importante do rock brasileiro em todos os tempos. Não queira discutir. Os fãs são chatos, as músicas tocaram pra caralho, essa idéia "repertório de DA de faculdade" enoja, mas a Legião Urbana é a banda que mais vendeu discos no rock nacional utilizando um repertório forte, de letras inteligentes e boas músicas. Mais do que comparar, é preciso analisar (e admirar) a textualidade direta e punk que Renato impôs em seus primeiros escritos, e que aos poucos foi se transformando em poética no decorrer dos anos. Quer coisa mais na cara do que a letra de Helicópteros no Céu: "Já me falaram muitas vezes / A voz do povo é a voz de Deus / Será que Deus é mudo???". Ou então O Despertar dos Mortos: "Fuga de rico é televisão. Fuga de pobre é religião". Texto direto, punk, rima pobre, nada de poética.

Das dezoito faixas do álbum, metade nunca havia sido gravada oficialmente, apesar de circular do Oiapoque ao Chuí em versões piratas extremamente toscas. Os destaques são a ótima Helicópteros no Céu (com boas guitarras circulares e boa letra punk), as diretas Love Song One e Submissa, a depressiva Heroina, a textual O Despertar dos Mortos e ainda Anúncio de Refrigerantes, que surge em versão guitarras e voz, e permite um paralelo de opiniões entre o Renato pré-Legião com o Humberto Gessinger de Terra de Gigantes. Enquanto um diz: "A vida que a gente leva não é nada igual aos anúncios de refrigerantes". O outro opina: "A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes". Quem estava certo? Os dois. Completam o rol de inéditas a primeira versão de Baader-Meinhof Blues 1, Construção Civil e Benzina, com letra vetada pelos advogados da gravadora, que temiam um processo por apologia às drogas que retirasse o disco das lojas. "Não quero cocaína / Não quero benzadrina / Não quero heroína / Vou cheirar benzina", diz a letra.

Porém, apesar da curiosidade (mórbida?) sobre o material inédito de uma banda que acabou a mais de vinte e poucos anos, o que permite realmente análises mais profundas de como esse País abandonado nas mãos de incompetentes não mudou nada em três longas décadas são as canções já gravadas ou pela Legião Urbana ou pelo Capital Inicial. É importante dizer isso porque quase todas as canções do espólio do Aborto Elétrico regravadas posteriormente viraram hinos de gerações, se transformando em canções emblemáticas que traziam mensagens que davam conta do caos em que vivíamos, porém, parece que cada uma das pessoas que cantava aquelas letras não tinha noção nenhuma das coisas que estava cantando. Como diria uma professora de colegial: "As pessoas sabem ouvir, mas elas precisavam aprender a escutar. Elas estão acostumadas a ver, mas precisam aprender a enxergar". Ninguém escutou. Ninguém enxergou.

Desta forma, é impressionante que as coisas aconteçam do jeito que acontecem quando, um dia, uma geração inteira cantou "desde pequenos nós comemos lixo comercial, industrial" (Geração Coca-Cola) ou "vocês se perdem no meio de tanto medo de não conseguir dinheiro pra comprar sem se vender" (Fátima) ou ainda "você quer ficar maluco e acha que está tudo bem / Mas alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém" (Conexão Amazônica) e "Se você quer ter carro do ano, TV a Cores, pagar imposto, ter pistolão, ter filhos na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão, ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão, você tem que passar no vestibular" (Química), entre tantos outros trechos importantes. O que fica parecendo é que toda uma geração de pseudo-rebeldes virou cidadão modelo e burguês padrão. Edukators, entende. Como diria Joan Baez, a comodidade é a pior doença que pode atacar uma pessoa. E somos uma nação inteira de acomodados.

"Que País É Este? é uma das marcas registradas da Legião Urbana, escrita em 1978 para o então Aborto Elétrico, incorporada definitivamente ao repertório da Legião", contava Renato Russo no encarte do álbum Legião Urbana - Que País É Este. "Nunca foi gravada antes porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no País, tornando a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e é possível fazer a pergunta do título, sem erros", explica. "A temática continua atual, às vezes até demais. 'Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado' é - de certa forma - adolescente e ingênuo, mas parece até que queremos 'vender todas as almas dos nossos índios num leilão', ainda do jeito que as coisas vão". As aspas de Renato Russo foram escritas 18 anos atrás. Não mudou nada. De certa forma, piorou. Palmas.

Capital Inicial / Aborto Elétrico não vai mudar a vida de ninguém. Porém, muita gente anda se atentando apenas ao quesito musical (que é preciso atenção, mas não estamos falando de uma banda comum, estamos falando de uma banda que tem relação com o grupo de rock que mais vendeu discos - e mensagens - no Brasil em todos os tempos) e o repertório do Aborto Elétrico era bem mais do que isso. E é preciso lembrar que é impossível dissociar a arte do momento histórico que o mundo passa. O Aborto Elétrico era punk como não existe mais. Hoje os punks querem salvar vaquinhas, falar de amor meloso e desfilar piercings, tatuagens e camisetas de sua banda preferida. Visual sem atitude. Já foi diferente. A versão Aborto Elétrico do Capital Inicial não é punk. É rock comportado e limpinho, mas traz letras escritas quase trinta anos atrás que soam mais urgentes e atuais que qualquer coisa que você irá ler em encartes de discos nacionais em 2005. É para ouvir e sentir vergonha de que tenhamos deixado as coisas chegarem no lugar em que chegaram. A culpa é toda nossa. Ninguém gosta de verdades jogadas na cara, ainda mais por caras como o Dinho (risos), mas "as pessoas precisam aprender que não basta viver, é preciso existir".


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