Olhos de Vidro
de Marcelo Silva Costa

Onze horas da noite, um barzinho qualquer desses que se amontoam na noite de qualquer cidade mediana, música, muita gente, uma mesa ao ar livre, duas pessoas, um casal. Ele olha o movimento, distraído . Ela sorri, para todos:

- Marcos, pega aquela estrela pra mim ? -ela
- Qual ? ele, olhando o céu claro cheio de estrelas; não parecia que as estrelas estavam no céu mas sim que o céu estava nas estrelas.
- Aquela que está com um brilho amarelo. -ela, cara de quero quero. Ele deu um sorriso ante a inocência; será que ela não havia entendido quando ele disse que era daltônico ? Talvez ela nem soubesse o que era ser daltônico...
- Ah, sei. Aquela perto do Cruzeiro do Sul !?!? -ele
- Nãooooo. - ela, com uma cara emburrada; aquela cara que criança faz quando quer alguma coisa no supermercado. Só faltou espernear. Se esperneasse, ele a pegaria no colo e lhe daria umas boas palmadas.
-Você não é nada romântico. -ela, com um pouquinho de ira e dessa vez não foi um sorriso mas sim uma gargalhada que invadiu a alma dele quando pensou em quantos daltônicos deixam de ser românticos só pelo fato de não verem a cor de uma estrela. Ela deve ter ouvido o gargalhar, e pediu uma taça de vinho.
- Luciana, eu darei todas as estrelas do mundo pra você ! -ele achou que não poderia ser mais romântico do que isso, e talvez nem pudesse mesmo, era verão. Ela deu um sorriso de boneca e fechou os olhos pra que ele a beijasse. Deve ter sido um beijo longo pois quando abriu os olhos, estava no quarto dela, na cama dela, nos braços dela e o sol já começava a esconder as estrelas amarelas. Quando levantou e viu a brancura de seu pijama, lembrou de um poeta que dizia que "as flores do meu pijama ficaram na tua cama". E lá estava ele querendo saber onde é que foram parar as bolinhas coloridas de seu pijama preferido. Saiu procurando embaixo da cama, por entre o lençol, no copo de uísque, mas não encontrou nada. A garota dormia um sono tranqüilo e despreocupado e se ele não tivesse que ir embora talvez a ficasse admirando por horas e horas. Enfrentou o espelho do banheiro e se recusou a tomar decisões sérias. O reflexo no espelho o levou ao passado trazendo a imagem da tv em  preto e branco que havia na casa de seus avós. Uma vez queimou algo dentro dela e a tv ficou sem som. Hoje ele sabe que deveria ter sido uma válvula qualquer mas naquele tempo pensou que todo mundo na tv tivesse ficado mudo. Falava-se muito em epidemias e ele sabia que quando muitas pessoas tinham a mesma doença era um epidemia. Então, era epidemia de mudez. Tudo lembrava aquele homem que andava esquisitinho, com uma bengala, e tinha ainda um bigodão, uma cara engraçada e um chapéu preto. Melhor dizer que a roupa dele era toda preta. Esse homem nunca falava, mesmo quando a tv tinha som. Durante a tal epidemia, ninguém mais falava. Nosso garoto se confundiu mais ainda quando foi na casa de um amigo, e lá a tv falava. Começou a pensar, então, que seu avô tivesse brigado com o pessoal da tv. Um dia seu pai veio busca-lo, era primavera, e ele ficou um bom tempo pensando se seu avô havia feito as pazes com aquele pessoal da televisão.

- Marcos. -ele ouviu. Uma voz no espelho. O espelho falou. Ficou alguns segundos olhando, encarando, aqueles olhos, olhos de vidro, aquela imagem em preto e branco, quase muda.
- Marcos. -ele acordou do transe. Era Luciana que estava chamando. Devia ter acordado, devia ser outro mundo, outra galáxia, outro tempo, outro espaço.
Até hoje ele não sabe porque ficou tão nervoso naquela manhã de sol, amarelo. Tudo estava no seu lugar: os peixes no aquário, os quadros na parede, as bitas de cigarro no cinzeiro, As nuvens no céu, os mortos no cemitério, os pastores no rádio, o tempo perdido...

Deixou-a com um beijo carinhoso no rosto e partiu, sem rumo. Passou semanas olhando estrelas cairem do céu claro mas não conseguiu pegar nenhuma. Se tivesse conseguido, talvez voltasse, assim como quem trás o mundo escondido no fundo do bolso da calça. Se não voltasse seria feliz, um homem feliz, quase feliz, quase, feliz, felicidade, fe-li-ci-da-de.
Pensava nessa palavra enquanto tentava espetar a azeitona que estava perdida no meio do molho da macarronada quando o garçom se aproximou e cordialmente perguntou:

- O cavalheiro deseja mais alguma coisa ?
- Sim ! -ele, de olhos baixos, fixos na azeitona até a hora de espetar. Levantou a cabeça, vitorioso, e olhando a noite azul disse:
- Eu quero aquela estrela ! - percebendo que o garçom não se abalou ante a seu pedido absurdo. Diante dessa naturalidade imaginou quantas pessoas com pedidos absurdos esse garçom enfrentara em seus anos de cardápio. Interrompendo seu calculo com uma cordialidade que Marcos julgava a muito perdida nos homens, o garçom continuou e parecia uma brincadeirinha:
-Qual estrela o cavalheiro deseja ?
-Aquela que está com um brilho amarelo. -ele, olhando o céu azul, estrelado. O garçom sorriu.
- Sim senhor, já a vi. É aquela perto do Cruzeiro do Sul. Vou providencia-la para o cavalheiro. Desejas mais algo ?
- Sim, traga-me uma garrafa de vinho. -ele, admirando estrelas...