Caleisdoscópicas
Em Paris, Cancun ou Rio, a revolução somos nós!

por Dulce Quental
05/05/05


Cancun é aqui. Um paraíso de águas claras, onde uma brisa suave penteia o horizonte, sem o menor sinal de turbulência. Golfinhos nadando a cem metros da praia. Arraias vistas a olho nu, de tão transparente a água. No caminho para o arpoador, em plena calçada, um mergulhador carrega o resultado farto de uma manhã perfeita de pescaria. Esse é o Rio de Ipanema. Um sonho que durou duas semanas inteiras de praias limpas e céu de brigadeiro. Sem as tempestades e enchentes habituais das águas de março, um paraíso para turistas, desocupados ou loucos como eu que procuram um oásis no meio do caos urbano.

Radinho de pilha no ouvido. Estou plugada no paraíso mas não acredito. Outros, na mesma condição que eu, se cumprimentam bendizendo a condição de privilegiados. Em plena hora do batente estão na praia. Sem custos adicionais de passagem aérea, hospedagem, os ipanemenses são os seres mais felizes da terra. Vai durar pouco. Eles sabem. A temperatura já bateu 41 graus na véspera. Quando a chuva cair o cenário vai se desmanchar e jamais saberemos quando ele será montado de novo. Precisaremos de mais vinte dias sem chuva, muito calor bloqueando as frentes frias vindas do sul, ventos e correntes marítimas ideais, para que o fenômeno se repita outra vez. Mas a experiência vivida por alguns não se apagará tão rápido.

É como se uma janela se abrisse para uma outra dimensão - o sonho, a utopia - e de repente pudéssemos sentir a infinita possibilidade da felicidade. Que exagero, pensarão alguns, você está piegas demais, dirão outros. Talvez. Mas poucas coisas me deixam tão felizes como o mar.

O mar tem tanta vida. Há tanta energia nele que podemos sentir o movimento da terra no seu interior. E como precisamos de energia nos dias de hoje. Como viver nos consome rápido. Como a relação com as pessoas nos desgasta. Como é importante nos conectarmos com o ritmo que o mar e a terra nos dão para não perdermos a noção da nossa dimensão, da nossa insignificância. Temos que olhar para o que recebemos todos os dias e agradecer. Agradecer a água que bebemos, o ar que respiramos. O mundo se tornou um lugar tão difícil de se viver. Somos obrigados todos os dias a assistir impávidos e impotentes a atos de violência contra a humanidade e os seres humanos. Somos intoxicados todas as manhãs ao ler os jornais e temos que continuar a levar os nossos filhos à escola e ensiná-los a lição de casa e fazê-los acreditar que vale a pena estudar e aprender, quando nos sentimos desolados, desesperançados com a espécie humana. Quando até os pacifistas não acreditam mas na paz alguma coisa de muito séria está acontecendo no mundo.

Eu não sei, mas nós que somos pais temos obrigação de sermos otimistas. Temos que acreditar no imponderável. Ele acontece. Temos que acreditar na magia. Ela nos surpreende. Enquanto a maldade e o terror existir, existirá também inocência e beleza. E nós como humanos que somos, falíveis, estaremos sempre também a sua mercê. Da mesma maneira que somos aterrorizados, somos embalados e acariciados pela generosidade da vida e da natureza. Ela nos dá. Nós destruímos. Ela continua a nos oferecer. Até quando?

Precisamos de uma revolução. Eu não sei de que tipo e já estou velha demais pra acreditar que só se muda as coisas na porrada - meus sonhos socialistas começaram a se abalar no inicio dos anos oitenta, quando desembarquei em Paris com apenas 20 anos de praia.

Munida com toda a verborragia que a Faculdade de Ciências Sociais da UFRJ me havia dado, eu discursava como uma verdadeira militante do PT - entusiasmada com os discurso do Lula, ainda presidente dos metalúrgicos do ABC - entediando o grupo de jovens intelectuais brasileiros que flanavam pela cidade. Quem haveria de querer saber de política quando a primavera parisiense começava a dar as caras depois de um longo inverno europeu? Só o baixinho e barbudo rapaz se interessou. A poetisa de cabelos encaracolados e cara de sono desceu do bi-cama que ocupava o canto do cubículo da inesquecível Beth Cleimman, a nossa Gertrude Stein, e achou um tédio a conversa. Recém saída de uma faculdade inglesa, Ana Cristina César começava a despontar no udi-grude Rio-Paris como um mito ainda vivo. O aspirante a escritor maldito, que era apaixonado por ela, nem piscou, a jardas do chão com seu romance eternamente inacabado. Mas meu baixinho e narigudo amigo se interessou. E eu me interessei por ele.

Um pouco por causa dele comecei a escrever. Por causa dos seus cadernos, que ele carregava pra todos os lados anotando tudo que pensava. Por causa dos livros que lia, David Cooper e a antipsiquiatria, Susan Sontag, e dos filmes que via e que vimos tantas vezes juntos. Nosso romance durou apenas uma primavera. Mas foi a minha "Primavera de Paris".

Meus sonhos socialistas se abalaram mas não ruíram. Apenas se modificaram. Me acostumei a aceitar que não posso mudar certas coisas quando quero e da forma que quero. Aprendi a ter paciência. A esperar as boas ondas. A dar pequenos passos. E hoje sinto que alguma outra forma de resistência foi criada. Sinto ainda falta de idéias mais gerais sobre as coisas - ideologia pra viver, como dizia Cazuza - partidos fortes com lideranças carismáticas, palavras de ordem. Mas o mundo ficou complexo demais, difícil de se pensar. A velocidade das telecomunicações, o excesso de informação trouxe ao pensamento uma subjetividade extenuante.

Quando vejo que até o Lula mudou. E olha que demorou. Hoje ele fala em alianças políticas, impensáveis há uma década atrás. Aprendeu, depois de perder três eleições, que a situação é mais complexa. Só tem chance de ganhar se conciliar interesses. Na porrada não vai.

Nada na porrada vai. Vejam só a crise no Oriente Médio. Todos perdem com a radicalização. Não se chega a lugar nenhum. Depois do 11 de setembro o mundo se dividiu em terroristas e não terroristas, bem ao gosto da América conduzida por Bush. A violência aumentou em todo o mundo, legitimada pelo ataque americano ao Afeganistão. O conflito entre Índia e Paquistão, a intolerância de árabes e israelenses. Até o MST justifica a radicalização das suas ações usando termos como terrorismo – o governo com a sua política é que é terrorista. Enfim, zonas de conflito no mundo inteiro radicalizaram o seu discurso e o mundo virou um palco onde o sangue de inocentes é derramado todos os dias. Alguma coisa vai ter que ser feita. O que nós, meros expectadores do Jornal Nacional vamos fazer? O que diremos aos nossos filhos mais tarde quando um desses loucos jogar uma bomba atômica e matar milhões de inocentes?

A vocação dos homens é o entendimento. A vocação dos brasileiros, a alegria. A vocação do Rio, uma cidade portuária, o turismo. Por isso, quando naquela manhã, fugindo de todos os compromissos de uma plena segunda-feira, eu mergulhei nas águas claras do arpoador, não pude deixar de pensar: o Haiti não pode ser mais aqui. Essa cidade tem que cumprir a sua vocação, já que está voltada para o oceano, aberta a correntes e à mudança dos ventos. Se eles são favoráveis, é aconselhável cruzar a grande água, como diz o I Ching. Nesse caso, é só seguir os habitantes do mar. Eles invadem a costa e povoam nossas praias nos brindando com o show da natureza. Cabe a nós blindá-los com um show de humanidade.

Dulce Quental é cantora e letrista. Em sua voz podem ser ouvidas canções como Viver, Natureza Humana, Terra de Gigantes, Caleidoscópio e Onde Mora o Amor, entre muitas outras. Sua "caneta" já assinou parcerias com Frejat (O Poeta Está Vivo, Pedra, Flor e Espinho), Leoni (O Fim da Estrada) e Cidade Negra (Cidade Partida). Dulce lançou Beleza Roubada, seu quarto álbum solo, em 2004. Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com