O CEL é o Limite

Estou Preocupado com Kelly Key

por Carlos Eduardo Lima
Foto: Divulgação / E-card Site Oficial
22/05/06


Eu sou fã de Kelly Key. Acredite, é serio. Desde que ouvi Baba pela primeira vez, lá pelo ano 2000, quando ela apareceu para a mídia. Gostei da música antes de ver que a cantora era uma beleza de menina. E, como jornalista que escreve sobre música, me interessei naquela pequena estrela que surgia, em contraponto ao bom mocismo sertanejo adolescente de Sandy & Junior, que grassava nas mentes do público teen brazuca. Até escrevi um texto para o Scream & Yell na época, talvez um pouco depois, intitulado "A Anti-Sandy", apontando para as diferenças nas propostas das duas teens brazucas. Kelly, a mazinha. E Sandy, a boazinha.

Hoje, 5 anos depois disso, ainda me interesso pelo trabalho de Kelly Key, sob o ponto de vista jornalístico. A menina casou, é mãe de dois filhos, tem uma carreira que já soma quatro discos, entre eles um ao vivo, no qual fica evidente seu pouco alcance vocal e a fragilidade do trabalho quando está no palco. Nada disso importa, visto que KK parece ser uma artista preocupada em passar sinceridade no seu trabalho. Isso é raro hoje em dia. O que mais vemos é gente posando. De mau, de descolado, de gay, de junkie, de indie, de desentendido. Mas é interessante notar o quanto Kelly Key se desvirtuou do que se propôs a fazer no trabalho inicial. Ali, em 2000, cantando sobre assuntos das adolescentes de maneira mais que espontânea e com realismo, Kelly estabeleceu um pequeno marco na música popinha brasileira ao quebrar a imagem da mulher subserviente ao homem. Isso já durava décadas. Ela chutava o cara chato, espezinhava o sujeito mais velho que a descartara, sacaneava o namorado que a traía, fugia da aula para transar no motel, mas queria, no fim, casar, ter filhos e tal.

Na verdade, é tudo o que somos mais ou menos levados a querer. A gente quase sempre quer ter filhos, vida própria, enfim, ser gente. Seu disco de estréia, amigos, foi produzido pelo saudoso Tom Capone, masterizado em Nova York. Ela se apresentava como aquele tipo de menina que a gente vê na rua e vira a cabeça pra olhar, que se produz em casa para ir ao supermercado, que fala “menos”, “seje” e “esteje”, mas que realmente existe no mundo real, no prédio, no círculo de amigos do colégio, na galera da faculdade. Daquelas que não leva desaforo pra casa, mas que chora olhando uma provável coleção de papéis de carta, guardados desde a infância.

Kelly arrombou a banca com os dois primeiros discos. Depois veio o tal disco ao vivo e, bem, seu quarto disco, no qual ela faz a cover de I’m A Barbie Girl, do grupo sueco Aqua. Ali algo muito importante se descortinava. KK aparecia infantilizada, bobinha, pasteurizada pela produção de Plínio Profeta, com um disco evidentemente voltado para o público infantilóide. Talvez seduzida pela possibilidade de se tornar uma Xuxa ou uma fadinha ou algo assim, a menina Kelly Afonso, nascida no subúrbio carioca, falou mais alto que a mulherona Kelly Key, que apareceu no primeiro momento. Fico me perguntando o porquê disso tudo. O que teria levado KK a esta guinada? Por que eu me preocupo com isso?

Simples. Você certamente já ouviu músicas de gente como Pussycat Dolls ou My Humps, do Black Eyed Peas. A temática é a mesma: são músicas sacanas, de sedução, de insinuação, de auto-afirmação feminina, que emplacam nas paradas seja pelo elemento visual dos clipes ou pela massificação da mídia. Além dessas, há o tormentinho de Avril Lavigne e as quase balzacas Britney Spears e Christina Aguilera. E em português? O que você ouve? Os funks cariocas que exacerbam o limite do possível e plausível e se transformam em música-safari cultural, quando as pessoas querem conhecer de longe outros mundos e assuntos.

Tati Quebra-Barraco, Deise Tigrona, todas essas artistas do funk carioca são vendidas como coisas exóticas, estranhas, no sentido de não serem artistas para consumo em todos os momentos. Kelly Key escapa desse nicho e arranha o primeiro escalão com sua imagem de lourinha, gatinha, de voz doce e sorrisão. Ela quase é palatável para o grande público. Mas, a quem interessaria uma cantora falando sobre esse assunto? Acho que a infantilização de Kelly Key é uma sutil imposição das "circunstâncias" ao seu modus operandi. Cantar "eu sou a Barbie Girl" a tirou do mapa em que estava e a colocou no mapinha infantil, aquele que as criancinhas desenham no caderno de Geografia. Talvez ainda menos que isso. A postura firme diante dos machos foi adocicada por versos como "você chegou em mim, aí eu tive que escutar papinho, papinho", coisa que uma menina de 11 anos poderia dizer para a outra.
Isso é triste.

Kelly está gravando novo disco. Está em seu site. Eu o visitei antes de escrever esse pequeno texto. Ela está ansiosa e feliz por gravar mais um disco, sob a confortável chancela da Warner Music, a mesma gravadora de gente como Paul Simon, Death Cab For Cutie e Neil Young, todos lançando discos ao mesmo tempo no mercado brazuca. Fico com medo de pensar que Kelly Key volte cantando algo ainda mais inverossímil, num processo de contra-mão etária que se insinuou neste último e péssimo disco. Ela, no entanto, ainda merece um voto de confiança deste escriba pelo fato de ter mostrado o seu potencial de maneira tão espontânea e por ser, mesmo que sem querer, uma pequena representante na solitária seara da valorização da mulher na música do nosso torrão natal.

PS: desculpem a demora em atualizar essa coluna. Vários imprevistos de toda sorte me atrapalharam muito, mas vaso ruim não quebra. Logo, estou de volta

Carlos Eduardo Lima, o CEL, tem quase 35 anos, é caucasiano, apolítico, incolor, inodoro e insípido. Contato: cel@rockpress.com.br