O CEL é o Limite

Bruce Springsteen e Eu

por Carlos Eduardo Lima
15/03/06


"Eu tentei ser Roy Orbison". Essa frase não é minha. É de Bruce Springsteen. Ele fala isso quando está tentando explicar para uma platéia muda e incapaz de um movimento sequer, o que estava pensando quando escreveu Thunder Road. Há muito para dizer sobre o Boss. Antes de mais nada, quero manifestar minha indignação para com os que o acham chato, pedante, americano demais. Bruce Springsteen é um cidadão americano, mas é um habitante do planeta, assim como você e eu. É um homem de 56 anos bem vividos, 33 deles vivendo na estrada do rock, levando multidões a concertos quase ecumênicos, nos quais o som e a mensagem, através da dança e das palavras elevavam as almas e os corpos dos presentes, público e banda, platéia e E-Street Band.

Nesses dias fui marcado profundamente por duas aparições de Springsteen em DVD’s e tive certeza, a partir delas, que ele passou a ser um dos meus heróis. Nós temos heróis e a maior virtude do mundo é admitir sua existência. Eles nos inspiram, nos modificam. Eu quis ser como Bruce Springsteen nesses dias.

Quando o vi pela primeira vez, se esgoelando no clipe de We Are The World ou dançando com uma adolescente Courtney Cox Arquette no clipe de Dancing In The Dark, não me interessei mais que o normal. Depois, alguns anos no futuro, viria a apreciar seus discos, principalmente seu terceiro álbum, Born To Run, reconhecidamente sua obra-prima. A partir dele conheci outros discos e confesso que sempre achei sua obra injustamente desconhecida por aqui. Bruce deveria ser um ícone para o povinho que ama Ryan Adams ou mesmo Wilco. Ele é um desbravador de estilos, forjou uma abordagem da vida de rua dos subúrbios de New Jersey num tempo em que os USA eram glamour e Chevrolets nas ruas. Mas parece que o povo não se conecta totalmente com a verve abundante de Springsteen. Em sua obra há espaço para amor, desamor, espiritualidade, fé, paz, carros, protesto, tudo sobre uma massa rítmica irrefutavelmente rock, mestiça de influências soul. Portanto, não há porque não gostar dele.

Suas duas aparições que me deixaram de boca aberta foram de shows de 2000 e do programa da VH-1, Storytellers, no qual ele explica, verso a verso, o que significam oito canções suas. Em 2000 ele estava no fim da turnê de reunião de sua banda de apoio, a E-Street Band. Juntos, eles foram responsáveis por míticos shows de três, quatro horas de duração ao longo dos anos 70, divulgando discos como o já citado Born To Run, seu sucessor, Darkness On The Edge Of Town ou o duplo The River. Nessa fase, entre 1975 e 1980, Bruce pariu três clássicos do rock. Aliado ao que fez na década de 1980, ele captou um publico capaz de lotar por dez noites seguidas o Madison Square Garden em Nova York. Ali, ao lado dos amigos de quase trinta anos de carreira (na época) ele desfilou seus clássicos.

Em um determinado ponto, ele inicia Tenth Avenue Freeze Out, a segunda faixa de Born To Run e que é uma biografia da banda. Conta com metáforas nem tão obscuras, como a banda se formou. É algo tão tocante que é capaz de levar alguém às lagrimas, como fez comigo. O motivo é simples, porque é universal. A celebração que se faz da banda é a mesma que se faz da vida. É como o aniversário perfeito, com o bolo e o presente perfeitos, com pai e mãe e família. Bruce faz da multidão uma família. Ele canta a música, que tem três minutos na versão original, em 18 minutos. Apresenta toda a banda. Primeiro Roy Bittan, o pianista. Depois passa para o guitarrista Steve Van Zandt, que hoje é um dos integrantes do elenco da série The Sopranos. Passa para o baixista Gary Tallent, até o baterista, Max Weinberg, que toca na banda do Late Night Show, de Conan O’Brien. Dali ele apresenta Nils Lofgren, que largou sua carreira solo em 1982 para integrar a banda quando Van Zandt foi para a carreira solo e permaneceu quando ele voltou para essa reunião. O próximo é Danny Frederici, companheiro de Bruce desde o início, organista, passando para a apresentação de sua própria esposa, Patti Scialfa, até o momento mágico, que é a apresentação do saxofonista Clarence Clemmons.

O "Big Man", como é chamado na música, é um dos colaboradores de primeira hora de Bruce e este o anuncia como o "ministro do soul" e "secretário da irmandade", além de brincar com a platéia nomeando-o como o próximo candidato ao senado pelo Estado de Nova York. Bruce pergunta para cerca de dez mil pessoas se precisa dizer o nome de Clarence e a multidão responde dizendo "Clarence", várias vezes. Até que a música retorna ao ritmo original com o verso, livremente traduzido por mim "E depois de algumas mudanças, Big Man entrou para a banda. E da beira da praia até o centro da cidade, as lindas meninas acenaram suas mãos. Então eu me sentei e sorri, ao ver que Bad Scooter e Big Man iriam explodir essa cidade em duas". E o público vai em coreografia de mãos e dança, acompanhando exatamente o que Bruce e Clarence fazem no palco, num baile atemporal, do qual todos nós já participamos, que é primo do mosh, irmão da dança, pai do passinho marcado e irmão bastardo da contemplação muda, pura e simples.

No programa da VH-1, ao explicar sete de suas canções, entre elas três pequenos clássicos, Nebraska, Brilliant Disguise e Blinded By The Light, Bruce resolve contar o que tinha em mente quando compôs "Thunder Road. O que nos leva de volta ao inicio do texto. Ele diz que a música é um convite, para algo. Que a compôs numa casa verde, em West End Court. Durante a releitura dos versos, ele menciona coisas como "Maria está dançando na varanda, ao som do rádio, Roy Orbison canta para os solitários". Ele não diz, mas a canção só poderia ser Only The Lonely e isso me conecta imediatamente a tudo o que ele quer dizer. Eu já amei figuras de mulheres dançando ao som do rádio, com o vento a tocar-lhes as frontes e altear-lhes o cabelo. E já chorei ouvindo Only The Lonely.

Mais para frente ele diz: "pode entrar debaixo da sua coberta e estudar sua dor, uma cruz para cada amante, jogar rosas na chuva, passar o verão rezando em vão para que um salvador apareça na sua rua". E ele arremata. "Eu estudei em uma escola católica". E segue: "toda a redenção que ofereço está sob este capô sujo, é uma chance de se redimir, o que mais podemos fazer agora, além de descer o vidro e deixar o vento soprar seus cabelos, a noite se abre pra nós e essa estrada nos levará a qualquer lugar". E reflete sobre o verso dizendo: "É aí que tudo acontece, eu queria passar uma sensação que fizesse as pessoas correrem atrás dela".

Por fim ele novamente fala: "havia fantasmas nos olhos de todos aqueles a quem mandou embora, eles assombram essa estrada de areia, e os esqueletos dos Chevrolets queimados gritam seu nome na rua à noite, sua roupa de formatura, em farrapos, aos pés deles, e no frio que antecede a aurora, você ouve o ronco dos motores" e conclui que tudo isso simboliza tudo o que ainda deixaremos para trás. E arremata, "Mary, entre no carro, esta cidade está cheia de perdedores e eu quero vencer". Novamente, ao fim deste programa (que está no DVD Bruce Springsteen VH-1 Storytellers), eu me vi lacrimejante, não pela beleza irresistível dos versos das músicas, mas pela simplicidade com que o homem Bruce Springsteen falou de sua vida como se falasse pela minha ou pela de vocês.

Mesmo que você não seja fã, procure ver esses dois momentos iluminados de Bruce. Minha descrição, feita com a copia no pause/play do DVD às 3h53 da manhã de uma segunda-feira está longe da precisão com que minha alma e coração foram atingidos. Sei que isso pode não significar tanto, amigo leitor, mas há gente que canta direto para nós e este nativo de New Jersey passou a fazer isso de hoje em diante pra mim. Diretamente para mim. E, certamente, na busca que iniciarei atrás dos discos seus que ainda não tenho, vou ter a convicção que ele sempre fez isso e eu nunca notei. Quem sabe você não percebe o mesmo?

Carlos Eduardo Lima, o CEL, tem quase 35 anos, é caucasiano, apolítico, incolor, inodoro e insípido. Contato: cel@rockpress.com.br