O CEL é o Limite
Crônica De Uma Morte Anunciada

por Carlos Eduardo Lima
07/02/06


Peço licença a Gabriel Garcia Marquez ao surrupiar o título de um de seus melhores livros para dar nome a esse meu pequeno amontoado de palavras. A idéia é simples e bastante aterradora, tanto que resolvi usar a visibilidade que o Scream & Yell possui para falar disso. A relação que desenvolvemos ao escrever num site de cultura pop é muito legal. Não raro recebo e-mails de congratulações, outros de xingamentos (ainda bem que são poucos!) e vários outros indícios de que alguém está lendo o que está sendo escrito. Gerundismos à parte, é legal pacas.

Geralmente escrevo coisas pessoais até demais por aqui e fico feliz em perceber que elas servem para alguém lembrar de algo querido ou ter algum insight sobre algo que estava bem abaixo de seu nariz e ainda não havia sido notado. Pois bem. Entre leitores manifestantes de opiniões, há uma menina em especial, que me escreve com certa periodicidade. Ela gosta dos textos, se compraz da emoção que tento imprimir nos escritos, algo que não evito, mas, bem, não quero falar de mim. Esta leitora me enviou um e-mail há alguns dias falando que havia estabelecido um prazo para ela e que tal prazo era o mais importante a que ela se submetera na vida. Eu respondi o e-mail, agradecendo o contato, perguntando algumas amenidades e, já que não havia compreendido totalmente, perguntei do tal prazo. Afinal, para que era esse prazo? O que era isso? A resposta tardou, mas chegou. Ela dizia, com clareza e espontaneidade que era um prazo para cometer suicídio, inclusive mencionando maneiras mais ou menos eficazes. Ponto.

Bem, amigo leitor. Sei que tudo o que lemos pode ser falso até prova em contrário, como na vida ou na Lei. Sei que tudo pode ser um trote ou uma brincadeira típica do cinismo do século XXI. Mas, por outro lado, pode realmente ser alguma pessoa de vinte e pouquissimos anos, angustiada, dividindo comigo um segredo terrível, talvez o mais terrível de todos. A sua própria morte. Resolvi que faria algo sobre isso e, perdoem-me, resolvi responder a ela, mantendo toda a sua privacidade, aqui, no meu espaço no Scream & Yell. Portanto, esquecam algumas elocubrações que seriam feitas sobre algum fato ligado à música, cinema ou uma rua da minha vida. O assunto hoje é, bem, a vida propriamente dita. E como se chega ao ponto de não querer tê-la.

O que me veio a mente, assim que li o e-mail da moça, foi uma música dos Engenheiros do Hawai. De 1990, A Violência Travestida Faz Seu Trottoir é uma das melhores composições de Gessinger em toda a sua carreira. Em algum momento da música, ele murmura: "todo suicida acredita na vida depois da morte". Talvez isso seja verdade, uma vez que, imagino, o suicida pretenda encerrar sofrimentos que pensa serem impossíveis de alívio, com a própria morte, mas, movido pelo instintivo desejo de estar bem. Pra isso, uma reencarnação seria o real objetivo, uma vida melhor, menos triste, ainda que seja outra vida. Eu não sou espírita. Minha religião é só minha, acredito na capacidade individual de chegarmos a Deus e dispenso dogmas pre-existentes para me levarem até ele. E na religião do Carlos Eduardo Lima há espaço para a crença moderada na reencarnação pelo simples pensamento de que as trivialidades desse mundo são, hum, triviais demais para justificar a nossa presença aqui. Pense: será que você veio pra cá apenas para comer, dormir, trabalhar, sofrer, sorrir, amar, desamar e morrer? Parece-me pouco, bem pouco.

Deixando a música dos Engenheiros de lado e partindo para uma tentativa meio torta de convencimento de que o suicídio não é a solução para problemas da vida, pensei que às vezes confundimos um pensamento igualmente ligado à morte, mas não um pensamento que nos afirma que vamos morrer pela nossa própria vontade. Quem nunca imaginou como a vida seria sem a sua presença? Eu já. Várias vezes. E sempre por motivos que eram reais desejos de permanecer vivo. É aquela coisa: a gente quer tanto estar bem que fica pensando como os outros (e não nós) agiriam se a gente subitamente morresse? Quem choraria por nós? Quem lamentaria a nossa ausência? Quem sentiria, de fato, a nossa falta?

Isso não tem nada a ver com tirar a própria vida. Cometer suicídio e, pior, com prazo estabelecido, é muito pior. É o que pode haver de pior. E, portanto, difícil de demover. Como convencer alguém muito jovem, que pensa que morrer é a solução para seus problemas, que viver mais é a solução pra tudo isso? Sim, porque, amigo leitor, todas as respostas para as nossas aflições estão aqui, agora, provavelmente nas nossas mãos. Charadas kármicas nos movem em diferentes direções e nos fazem construir ou destruir o nosso próprio destino.

Me lembro de dois fatos, um ficcional e outro real, que me ajudaram a escrever algumas coisas pra essa leitora. Quando eu era pequeno, ainda lendo livros que a professora de português mandava, tive a oportunidade de encontrar uma obra de Frederick Forsythe, o mesmo escritor de O Dia Do Chacal, chamada O Pastor. Nesse pequeno livro, um piloto militar britânico pretende voltar pra casa na noite de Natal, guiando seu caça supersônico Vampire, pela noite, sobre a Alemanha. Em algum momento do caminho, uma pane nos sistemas de combustível. Ainda com muito tempo para voar e sabendo que, ainda assim, nunca atingiria qualquer aeroporto inglês, o piloto divaga sobre a sua iminente morte. Até que percebe, lá pelo fim do livro, um outro avião na escuridão. E este outro aparelho o guia até uma pista de pouso, na qual ele desce e percebe que algumas coisas estranhas aconteceram nessa aparição noturna. Corta.

Outro dia, ao jantar, vi a reportagem sobre o resgate da menina Letícia, que foi colocada na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, supostamente pela mãe, num saco de lixo, tendo uma pedra em seu interior, para puxar a menina para o afogamento e para a morte. O resgate dela, feito por um bombeiro com uma vara e o espanto ao ver que um bebê estava naquele saco, além das imagens da menina no hospital, devidamente acarinhada pelas enfermeiras, tudo isso me fez derramar umas lágrimas sobre a mesa. Corta.

Eu poderia enumerar várias situações cotidianas para dizer o quão preciosa é a vida. Eu poderia até romantizá-las dizendo algo como "você não poderia se privar de ao menos tentar melhorar seus problemas, as respostas estão em você" e soar como se eu tentasse ser um desses caras que escrevem sobre mecanismos mágicos de auto-ajuda.

Não quero fazer isso com a moça que pretende tirar sua vida. Apenas peço e, aproveitando seu prazo, peço que reflita durante toda a sua espera pelo momento definitivo, que pense que se há meios de encerrar sua vida pelas próprias mãos, como você não poderia modificar pequenos e enormes aspectos dela, também com suas próprias mãos? Por que achar que não pode resolver o que os outros insinuam que talvez você não possa? Por que pensar que morrer é a solução? Ou a fonte do alívio? Ou o fim dos problemas? É o fim, mas de tudo, de todas as possibilidades que você vai deixar de lado. De todos os momentos bons e ruins que ainda estão guardados para constar na sua ficha celeste.

Pense nas mil coisas banais e adoráveis que cessam. Pense em encerramento, fim, definitivo fim. Talvez seja algo tão terrível que não possamos decidir por nós mesmos. Talvez seja a chave de mísseis nucleares da alma, que devem ficar em mãos mais elevadas. Talvez seja apenas um quarto escuro e abafado, no qual não haja resposta para nada, muito menos alívio. Ficar por aqui, enfrentar as pequenas grandes coisas do dia-a-dia talvez ainda seja a melhor maneira de apostar no futuro. Não deixe de conjugar os verbos da vida. A morte, acho, não é nada quando comparada com a vida. Fique por aí. Vai ser melhor.

Carlos Eduardo Lima, o CEL, tem quase 35 anos, é caucasiano, apolítico, incolor, inodoro e insípido. Contato: cel@rockpress.com.br