"Bit" - Mundo Livre S/A
por Marcelo Costa
Fotos - Thiago Marinho e Divulgação

maccosta@hotmail.com
06/12/2004

Dezembro. Mais um ano chega ao seu último mês. É quando alguém sempre aparece dizendo: "Já é dezembro. Dias atrás era janeiro. O tempo voa". É, caro leitor, o tempo passa, o tempo voa e a poupança Bamerindus nem existe mais. O que você fez neste ano? O que você fez nos últimos dez anos? O box Bit responderia estas perguntas se elas fossem feitas para o músico e tocador de cavaquinho Fred Zero Quatro. Bit compila em quatro CDs e um DVD, tudo que uma das principais bandas brasileiras dos anos 90, o Mundo Livre S/A, fez nos últimos dez anos.

Antes de qualquer coisa, Bit serve de analise para com o cenário da música brasileira nos últimos 15 anos: Quantas bandas conseguiram, nesse longo tempo, construir uma obra? Nesses tempos velozes, em que os quinze minutos de Andy Warhol viraram lei, quantas bandas permaneceram produtivas e instigantes durante dez anos? Quantas bandas criaram um repertório evolutivo e consistente, que ainda manteve a virtude de não se render aos modismos que, verão vem-verão vai, inundam nossa patética indústria musical? Quantas bandas sobreviveram sem sucesso de massa, militando com todas as suas forças na contra-informação? Quantas?

Fred Zero Quatro, cabeça pensante do Mundo Livre S/A, passou dez anos mandando recados através de músicas, seja para atacar políticos, seja para louvar mulheres, seja para alertar o ouvinte: "Nada de pudores: ou você explora o próximo, ou o próximo é você" (Samba Esquema Noise, 1994). "Os sonhos murcham feito maracujá velho" (Pastilhas Coloridas, 1996). "Os inocentes pagam por nada representarem" (Quem Tem Bit Tem Tudo, 1998). "Minha mãe não pariu nenhum punk, no entanto aqui estou eu" (Compromisso de Morte, 1998). "O mercado é uma guerra: Lidere ou suma. Vença ou Morra" (Concorra a um Carro, 2000). "Eu só preciso das minhas pernas para chegar até você" (Ligação Direta, 2000). Ninguém pode dizer que não foi avisado.

Fred Zero Quatro conseguiu forjar uma obra tão punk quanto sonhadora nestes tempos insanos. Através de suas músicas, o Mundo Livre S/A se serviu de cavaquinho e guitarra para fazer política para o povo. Sintomático que, no belíssimo encarte, Zero Quatro nos lembre que nos últimos dez anos "quase nada mudou, a não ser para pior, em termos de controle do que é noticiado 'mundo livre' afora". É claro que o povo tal qual o conhecemos (esse que se liga em novela da Globo e ganha menos que dois salários mínimos) não chegou a conhecer o trabalho da banda. Também não vai ser agora, já que Bit chega às lojas com preço elevado (cerca de R$ 120), amparado no caráter luxuoso da empreitada, que reúne os quatro primeiros discos do grupo recifense, mais um DVD com clipes e raridades. Apesar do preço abusivo, o pacote tem sua razão de existir.

Bit serve tanto como porta de entrada ao território do Mundo Livre S/A quanto como análise da evolução de um dos grupos mais instigantes surgidos nos últimos tempos neste país abandonado pelos deuses. A rigor, musicalmente a caixa nada traz de novo, mas novo no sentido de inédito. Importante ressaltar isso, pois não dá para dizer que o disco Samba Esquema Noise, lançado em 1994 pelo selo Banguela (em parceria com a Warner), não traga nada de novo. A Bola do Jogo e Livre Iniciativa ainda transpiram revolução. Ouvidas hoje em dia, soam inquietantes. "Eletricidade alimenta tanto quanto oxigênio", diz a faixa de abertura, Manguebit. Precisava ser mais direto?

Da discografia do Mundo Livre, costumo dizer que os discos impares são os psicodélicos (com mais efeitos de estúdio) enquanto os pares são os punks (mais diretos). Samba Esquema Noise abre o pacote com a banda (ab)usando da produção em estúdio. Amparada por sua própria inexperiência, pelo auxilio de amigos (Skowa, Miranda, Nasi, Nando Reis, Charles Gavin, Syang, Gastão Moreira, Naná Vasconcelos, Paulo Miklos) e pelas caricias no ego devido ao "blá blá blá" na mídia sobre o movimento mangue beat (liderado pelo Mundo Livre de mãos dadas com Chico Science & Nação Zumbi), o grupo embarca em uma usina de sons. O resultado é um disco clássico, mas pouco sedutor. Mesmo assim, a tríade de abertura - Manguebit, A Bola do Jogo, Livre Iniciativa - deveria ser tombada pelo patrimônio histórico. O disco ainda destaca a praieira Musa da Ilha Grande (com Malu Mader 'reforçando' no backing vocal) e a carta de intenções Samba Esquema Noise.

Na seqüência, meio que se revoltando contra a parafernália usada na estréia, o grupo pari Guentando a Ôia, registrando a urgência nua e crua do punk à la Recife, ou seja, com cavaquinho e tambores. A crueza da produção pega na veia e o repertório é um dos melhores da carreira da banda. Fred Zero Quatro joga confetes sobre si mesmo em Free World enquanto Destruindo a Camada de Ozônio traz a única participação especial do disco: Chico Science. "Na espere nada do centro / Se a periferia está morta / Pois o que era velho no norte / Se torna novo no sul", canta Fred Zero Quatro. Ao final, antológico, o vocalista decreta: "Eu só queria ser Romário". (NE: o tempo voa mesmo, já que até o Romário já se aposentou). Computadores Fazem Arte, de Zero Quatro, foi gravada pela Nação Zumbi no álbum de estréia. Desafiando Roma louva o Subcomandante Marcos. Já Tentando Entender as Mulheres sacaneia a ala feminina: "Para cada mulher satisfeita existe um homem morto".

Guentando a Ôia não pára por ai. A dobradinha Girando em Torno do Sol e Seu Suor é o Melhor de Você (minha preferida) é incendiária, amparadas em riffs violentos de guitarra e na batida (contagiante) do cavaquinho. Militando na Contra-Informação recorta a histórica conversa do ex-Ministro Rubens Ricupero com um jornalista enquanto o sambinha Leonor brinca com amores e vícios ("Ah, Leonor, cheira essa flor que eu roubei pra te dar / Amiga, não sabes o quanto eu cheirei"). Das três músicas que fecham o disco, o balanço de Pastilhas Coloridas ganha destaque por ser uma das melhores músicas do álbum, quiçá a melhor música do Mundo Livre S/A.

Após dois álbuns dispersos, o Mundo Livre S/A começou a trabalhar no terceiro. Carnaval na Obra (1998) ficou arquivado por quase um ano, devido a problemas com a gravadora. Com quatro produtores diferentes (Bid, Apollo 9, Edu K e Miranda), Carnaval na Obra serviu para mostrar que o Mundo Livre era uma banda capaz de lançar discos clássicos em uma época em que discos clássicos eram raros. O grande passo a frente de Carnaval na Obra é musical. As letras de Zero Quatro continuam inteligentes, mas agora ganham o reforço de excelentes arranjos musicais. O que era efeito e esporro nos primeiros discos se transforma em samba cadenciado, ora acelerado (Édipo, o Homem Que Virou Veículo), ora tradicional (A Expressão Exata, Ultrapassado), ora baladeiro (Maroca).

No entanto, é nas guitarras misturadas com cavaquinhos que residem as grandes canções do álbum. Alice Willians abre o disco com uma bateria fodona. Bolo de Ameixa traz bons riffs de guitarra, batida de cavaquinho e uma grande letra: "O proletariado achou a vingança de shorts, mini blusa e barriguinha de fora". Quem Tem Bit Tem Tudo conta com a participação de Anônimo, vocalista da banda mexicana Café Tacuba, nos vocais. A letra está entre as melhores de Zero Quatro: "Deus é o terror dos inocentes". Por mais que o disco seja grandioso e tenha uma unidade surpreendente (principalmente em se tratando de quatro produtores diferentes), as duas maiores pérolas do álbum caíram nas mãos de Carlos Eduardo Miranda: Quarta Parede é arrastada ao som de wah-wahs. O cara na TV conversa com você, com sossego, afinal ele quer o seu tempo (e tempo é dinheiro). Quando você percebe o que está desperdiçando, ele olha e diz: "Antes de desligar, ponha-se no meu lugar: eu sou apenas um ator". A guitarra fecha a canção com um solo maravilhoso. A outra grande canção é Compromisso de Morte, faixa que encerra o disco. A melodia - que apareceu instrumental na trilha sonora do filme Baile Perfumado - lembra Radiohead (Ok Computer e Carnaval na Obra foram paridos no mesmo período) e a letra é um achado: todos vão morrer, de Lampião aos banqueiros, de bala ou bomba. Um final antológico para um disco matador.

Por Pouco (2000), o disco que fecha o pacote, retomou a urgência do segundo disco, mas com o samba em primeiro plano, seja na faixa de abertura (O Mistério do Samba), na sambalada Meu Esquema, na chacoalhante Mexe-Mexe (presente do ídolo-mor, Jorge Ben Jor) e na desesperançosa faixa título. A veia punk é sentida na acelerada Concorra a Um Carro, na agitada Treme-Treme e no discurso Batedores. Covers de Manu Chao (Minha Galera, com participação das bandas Mestre Ambrósio, Nação Zumbi e Comadre Fulozinha), Mestre Laurentino (Lourinha Americana, com participação de Otto) e Tom Jobim (Garota de Ipanema, feita para um CD especial da gravadora) ainda se destacam neste que é o mais fraco álbum da caixa, mas mantém afiado o discurso de Zero Quatro, que na época criou o CNFS (Congresso Nacional do Futebol e do Samba), cujo objetivo, transcrito no encarte do álbum, era congregar torcedores de todos os times do Brasil tal como componentes de escolas de samba para saírem às ruas e exigir o direito à vida digna e à liberdade. Ficou fora do pacote o quinto disco do grupo, O Outro Mundo de Manoela Rosário, que tem tudo para ser o primeiro álbum do próximo pacote especial Mundo Livre S/A.

Se, musicalmente, Bit nada traz de inédito, o DVD compensa. São dez gravações, destas, quatro flagradas ao vivo nos estúdios da MTV e nunca lançadas comercialmente. Dos clipes, destaques para Samba Esquema Noise, Livre Iniciativa, Seu Suor é o Melhor de Você e Bolo de Ameixa (completam o tracking list Maroca e Melo das Musas). Das faixas ao vivo, temos um Mundo Livre iniciante flagrado no (já fechado) Aeroanta, em São Paulo, mostrando A Bola do Jogo. Depois, três covers: o sambinha de boteco Boca Rica (de Arnaldo Passos e Geraldo Pereira) é cantado por Fábio Regalia com os membros da banda ao redor de uma mesa. Chove Chuva traz a banda no palco da MTV com Zero Quatro imitando os trejeitos de Jorge Ben. Para fechar, Perfume de Gardênia, com participação especial dos Heartbreakers, gravado especialmente para o programa de Dia dos Namorados da emissora paulista.

O formato luxuoso da caixa, que se desdobra em seis partes e traz as capas de todos os discos, e os pensamentos de Zero Quatro na abertura do livreto (que reúne os encartes dos quatro álbuns) são convidativos. Porém, o que fica são as músicas. Em dez anos, Zero Quatro forjou uma obra capaz de mudar a vida das pessoas (como a deste que vos escreve, que lançou oficialmente seu primeiro fanzine porque precisava dizer que Carnaval na Obra era "o disco", e lá se vão quase oito anos. E muita coisa aconteceu desde aquele primeiro fanzine em papel). Tudo o que precisamos é aprender a valorizar o dia que estamos vivendo. É chegarmos no fim da noite, para descansar a cabeça no travesseiro, com orgulho por não ter deixado o dia passar em branco. É poder olhar para trás e perceber que um rastro de história foi deixado. É termos exemplos de gente que trilha o seu próprio caminho fazendo esta história. No final das contas, é nisso que se resume Bit: um fragmento de dez anos da vida de alguns homens que acreditam em textos e melodias que salvam vidas. É para se admirar, ouvir e se inspirar.

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Um rascunho de uma resenha de um show do Mundo Livre, por Marcelo Costa


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