"Devils & Dust", Bruce Springsteen
por Jonas Lopes
Yer Blues
17/05/2005

Bruce Springsteen está amargurado. Só pode. Sempre que sua mente arguta resolve voltar às raízes folk, àquela sonoridade simples e tocante dos sensacionais Nebraska (1982) e The Ghost Of Tom Joad (1995), é porque vem por aí uma azeda e minuciosa análise dos temores mais profundos da América.

Como John Steinbeck na literatura, o bom e velho Boss concentra sua mira no coração dos Estados Unidos – a relação é antiga: Bruce até se baseou em Steinbeck e seu As Vinhas da Ira (além de Woody Guthrie) para compor Tom Joad; e o estilo narrativo do cantor assemelha-se ao do romancista. E poucos na música fazem essa radiografia com tanta propriedade quanto Springsteen, o que já é um motivo considerável para que ele continue na estrada por um bom tempo. Relevância não falta.

Devils & Dust é seu décimo terceiro trabalho de estúdio, e outra cutucada nos imitadores de terceira que tentam buscar um lugar ao sol (Jesse Malin, Pete Yorn) e nos pseudocríticos da América, que mais parecem desejar o posto de celebridades (Michael Moore). Engraçado é que Springsteen não é cultuado como esses críticos vesgos da América, que enxergam só o que querem e distorcem os fatos até onde podem (né, seu Moore?). Agora que Johnny Cash morreu, só Bob Dylan, Jeff Tweedy, Neil Young, o jovem Conor Oberst e poucos outros são, na música, tão pertinentes na análise das mazelas de um país em frangalhos. Mas por algum motivo que não dá pra entender, não é cool gostar dele.

Isso é algo que já vem de algum tempo: depois de reinar na década de oitenta (com o ufanismo ao contrário de Born In The USA, que muitos não perceberam ser uma crítica, e não uma ovação ao país), Springsteen começou os anos noventa com uma dupla de discos fraquinhos (Human Touch e Lucky Town, de 1992), lançou o pouco ouvido e maravilhoso Tom Joad em 1995, e só voltou à ativa em 2002, com o consistente The Rising, inspirado no ataque às torres gêmeas e com uma das mais belas canções daquele ano, You’re Missing. E nada de a molecada correr atrás. Vai entender. Bem, outra chance surge agora com Devils & Dust, diferente de The Rising (é ainda melhor), e sem o auxílio de sua prezada E Street Band.

Boa parte das doze músicas do disco não é nova. A maioria foi composta em 1997, ao final da turnê de The Ghost Of Tom Joad, em quartos de hotel. A mais antiga é All The Way Home, composta em 1991. Já a faixa-título foi feita em 2003, após o início da guerra do Iraque, e é escrita do ponto de vista de um jovem soldado buscando um sentido para tudo aquilo: “I’ve got my finger on the trigger/but I don’ know who to trust”. Reno narra o episódio em que um rapaz se encontra com uma prostituta – e referências sexuais fizeram o disco ganhar uma tarja de conteúdo para adultos, mais comum em álbuns de rap. Silver Palomino e Long Time Comin’ são bonitas odes à juventude (e a segunda à esperança também). Outros grandes momentos estão nas baladas The Hitter, Black Cowboys e Matamoros Banks.

A sonoridade de Devils & Dust não chega a ser esquálida como as de Nebraska e The Ghost Of Tom Joad. O folk está lá, com melodias simples, o violão, uma gaitinha esperta e o piano habitual. A influência de seus velhos gurus, Woody Guthrie, Hank Williams e Dylan, também – o último vem a mente na balada Jesus Was An Only Son, que remete a If You See Her, Say Hello. Springsteen, porém, fortalece o som com órgãos, cordas discretas em segundo plano e até com uma cítara (em Reno). Arrisca um namoro tímido com seu lado rocker em All The Way Home e Long Time Comin’. Esse flerte dissipa um pouco a aridez de um Tom Joad, por exemplo, mas não é um vôo elétrico tão alto quanto os dos discos com a E Street.

O próximo passo de Springsteen é uma turnê acústica, sua primeira em anos. O que vem depois? Pelo bem de nossos ouvidos, Bruce deveria continuar amargurado. E daí tirar inspiração para mais um disco desses.

Devils & Dust também traz uma novidade extra álbum. É o primeiro disco top da música mundial (Rebirth da Jennifer Lopez não conta, né) a ganhar lançamento exclusivo no formato 'dual disc', que revigora o formato "lado a lado b" dos velhos vinis. No dual disc, o "lado a" traz o álbum conforme ele foi concebido, para ser ouvido em aparelhos de som. O "lado b", por sua vez, traz um DVD. No caso de Springsteen, o DVD traz um mini-performance acústica, com Bruce tocando seis novas faixas, só ele e violão. Além, os extras incluem a integra do álbum mixado em áudio 5.1 com direito a introdução de Bruce para cada faixa.

Leia também:
"The Rising", de Bruce Springsteen , por Marcelo Costa

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