Faixa a Faixa

No More Shall We Part - Nick Cave and the Bad Seeds

por Leonardo Vinhas
leonardo.vinhas@bol.com.br

Há mais de 25 anos Nick Cave destila sua vida em sua obra. Das primeiras gravações do extinto Birthday Party (que datam de 1976), do qual ele era vocalista e letrista, passando por seus livros e peças de teatros, até chegarmos a esse álbum de 2001, o australiano expõe seus desatinos e impressões sobre vida, amor, morte e religião de forma quase obsessiva, o que lhe rendeu os epítetos fáceis de "sinistro" e "mórbido".

Entretanto, Cave está além desses estereótipos. A presença de imagens sombrias em suas letras e o som denso que ele vem desenvolvendo com os Bad Seeds desde 1983 poderiam sugerir-lhe uma morbidez que, todavia, obnubila sua obra confessional, que oscila entre extremos de esperança e desespero.

No More Shall We Part é mais uma obra dentro dessa carreira longa e conturbada. Descendente direto de seu antecessor, o apaixonado The Boatman's Call (1998), esse disco traz arranjos elaborados que envolvem todos os instrumentos. Mas o que era contido no álbum anterior fica mais evidente aqui. E, embora as composições sejam em sua maioria da autoria exclusiva de Cave, os Bad Seeds são a única banda capaz de garantir o funcionamento perfeito das idéias de seu líder, graças às personalidades fortes dos fiéis guitarristas Mick Harvey e Blixa Bargeld, do baterista Thomas Wydler e do organista Conway Savage (o piano ficou por conta do próprio Nick). Completam o time Martyn P. Casey (baixo), Warren Ellis (violino), Jim Sclavunos (percussão) e as recém admitidas vocalistas de apoio Kate e Anna McGarringle.

O disco foi lançado no Brasil pela Sum Records com uma bela capinha protetora e pode ser encontrado depois de uma certa procura pelas lojas. Veja porquê vale a pena.



1) As I sat sadly by her side: Uma levada suingada de quitarra em tom baixo abre a canção. O piano a sobrepões e a trama perfeita de instrumentos que se ora se alternam em tomar a frente da canção, ora se mesclam, criam um clássico a altura de The Mercy Seat. Ou seja, os Bad Seeds continuam sabendo abrir um álbum como ninguém. Primeiro single do álbum. 

2) And no more shall we part: a melhor letra do disco, uma belíssima manifestação de esperança na reconciliação de um relacionamento partido, começa ao piano e ganha o reforço de violino e de uma bateria precisa. Os vocais femininos fazem uma rápida e marcante intervenção. No fim, Deus toma o lugar da amada, básico em se tratando de Nick Cave.

3) Hallelujah: nada a ver com a canção homônima de Leonard Cohen. A reverência melódica quase religiosa cede a um final que lembra, com as vozes de Anna e Kate circundando os lamentos de Cave, canções de campônios miseráveis. Arrepiante.

4) Love letter: uma das favoritas de Nick Hornby, é uma delicada canção pop (a maneira de Cave, claro). Novamente a reconciliação é o tema, numa abordagem harmônica e textualmente cândida. A melhor interpretação vocal de Nick no disco.


5) Fifteen feet of pure white snow: o segundo single de No More Shall We Part apresenta o desespero de uma cidade isolada e soterrada sob "quinze pés de neve puramente branca" (cerca de quatro metros). A dor e o terror dos moradores ("eu aceno para meu vizinho/ meu vizinho acena para mim/ mas meu vizinho é meu inimigo") é cantada em clima tenso onde Wydler transforma a bateria em um instrumento harmônico e Cave faz do piano um instrumento percussivo. De quebra, aqueles backing vocals que só Harvey e Bargeld sabem fazer. O refrão, as irmãs McGarringle clamando aos céus e Cave se desesperando, é pesado, violento e inesquecível. Outro clássico.

6) God is in the house: depois da calmaria, a tempestade. Ou não? Uma singela melodia ao piano suporta a história de uma cidadezinha que se torna temente a Deus e se vê livre de todos os perigos da "cidades grandes". Contudo, Cave trabalha a letra de modo a não se saber se ele está sendo irônico ou entusiasta quanto a postura dos moradores, que acabam se refugiando em suas casas e seu conservadorismo, pois "Deus está no pedaço".

7) Oh my Lord: lembra vagamente The Good Son (do álbum homônimo, gravado em 1999), por trazer um refrão choroso alternado a momentos sufocantes. A confusa letra narra a história de um homem igualmente confuso que enlouquece em um salão de cabeleireiro e as oscilações rítmicas refletem sua insanidade. Quando as cordas irrompem num arranjo magnificamente tenso (com Ellis solando no violino) em meio a trovoadas de guitarra, baixo e bateria, o ouvinte tem a sensação de estar dentro de uma mente insana que procura desesperadamente uma redenção por não se sabe bem o quê. O clima é grandioso e as guitarradas remetem a Neil Young. Sete minutos e meio de uma viagem que se intensifica a cada audição.

8) Sweetheart come: junto com o ex-Bad Seeds Barry Adamson, Cave compôs essa declaração de amor que usa o duplo sentido da palavra "come" (que pode ser traduzida como "vir" ou "gozar") como ponto de partida para expressar seus sentimentos. Tranqüila e discreta, funciona ainda melhor se ouvida antes de...

9) The sorrowful wife: piano e cordas assumem a frente na maior parte dessa faixa que, se ao final não virasse um semi-blues furioso à Leonard Cohen, poderia constar em The Boatman's Call. Todas aquelas imagens bucólicas e aqueles sentimentos fatalistas que ora assaltam Cave aparecem aqui para contar um breve história de amor, rejeição e perdão.

10) We came along this road: bela e comovente tragédia sobre alguém que comete o pecado maior por amor. Uma "murder ballad" sobre um flagra de adultério que termina com o marido assassinando o amante com sua própria arma. Apesar disso, o amor não esvanece do coração do assassino que foge em desespero relembrando os bons momentos do casal.

11) Gates to the garden: o narrador apaixona-se por uma noviça que habita um bucólico convento. As imagens que Cave constrói e alguns versos dilacerantes ("pois Deus está nessa sua mão que eu seguro") afastam a narrativa da banalidade. Um discreto wah-wah na guitarra combina-se perfeitamente com um tema delicado conduzido ao piano.

12) Darker with the day: como na maioria dos encerramentos de seus discos, Cave se atrapalha um pouco nessa canção ao não conseguir conciliar a métrica dos versos com as frases de piano que conduzem sua melodia. O refrão também não é dos melhores, mas nada que atrapalhe o brilho perene, ainda que às vezes assustador, que permeia esse álbum.

Texto dedicado à uma garota que soube transformar "Red Right Hand" em uma música dançante, dança que ela concedeu a mim e não esquecerei tão cedo.


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