MATÉRIAS ANTOLÓGICAS

Muita música, qualquer música
por Beck

Pediram que eu explicasse por que eu faço música. Poderia dizer que não tenho a mínima idéia e encerrar essa conversa, mas o pessoal do fã-clube insiste para que coloque isso no papel. Poderia ser uma resposta sentimental, freak, quase hippie. Faço música porque é algo natural e necessário para mim, como respirar. Não acredite nisso. Além de ser uma coisa idiota de se dizer, está muito longe da verdade. 

Acho que poderia ser bem feliz projetando aviões e mísseis, mas iria ter muito mais trabalho. No fundo, música é fácil. Cada instrumento tem sua maneira de tocar. Você escuta um monte de discos a sua vida inteira e depois sai por aí reproduzindo trechos legais que já ouviu. 

Se estou pregando o plágio? Sei lá. Só sei que é bobagem ficar se preocupando com isso quando alguém pode lançar uma música hoje em Seattle e escutá-la algumas horas depois em Hong Kong. Gosto de gente como Patti Smith, que parece que sofre o diabo na carne para escrever uma canção. Adoro essa mulher, adoro o rosto dela, fico olhando para uma foto dela por horas.

Gosto de gente como Prince, que é capaz de ficar trancado num estúdio fazendo um disco maravilhoso e depois resolve tatuar um sol na língua para chamar a atenção. 

Gosto de gente como Bob Dylan, que faz música para sacudir a cabeça das pessoas. Odeio quem gosta de dizer que Bob Dylan canta mal, que o show dele é uma porcaria e tal... Ora, esse cara nem precisava cantar. Todo mundo devia pagar ingresso só para ver o cara que escreve aquelas canções maravilhosas. 

Gosto de gente como as bandas de country dos botecos, gente que às vezes gasta metade do cachê barato no bar do lugar. 

Essa gente toda gosta de música, porque música dá tesão para quem faz e para quem escuta. Estou de saco cheio de ouvir pessoas me perguntando por que faço meus álbuns independentes. Faço porque gosto. Tem gente que queria passar o dia todo na cama, dormindo ou fazendo sexo. Eu gosto de ficar no estúdio, descobrindo como podem soar as coisas que gravo. 

Um garoto já mandou umas dez cartas para mim, querendo saber o que ele deve escutar. Que bobagem é essa? Por que eu devo ser guru musical de alguém? 

Para quem só vai sossegar quando eu disser alguma coisa, aqui vai: música de negro. Entre um disco de um artista branco e outro de um negro, escolha sempre o segundo. Se o negro não tiver criatividade para compor, pelo menos vai ter aquele balanço incrível dentro dele. 

Quanto aos artistas brancos, eu prefiro os que fazem muito barulho ou então os artistas country. São dois tipos de som que não precisam ser irretocáveis para soarem muito bem. Acho um absurdo que um garoto teen não escute Nine Inch Nails. Tem de aproveitar para ouvir nessa época, quando os hormônios estão trabalhando em alta velocidade. Depois que as pessoas crescem, ficam menos barulhentas. Veja o caso de Kim e Thurston (N.T.: Kim Gordon e Thurston Moore, casal veterano da banda noise Sonic Youth).

Sei que muita gente implica com minha adoração pelo country, mas eu não entendo essas pessoas. Mais do que querer saber o que elas têm a ver com meu gosto musical, fico curioso para saber o que elas enxergam de tão ruim na música country. 

O que eu tinha a dizer era isso: escutem música, qualquer música. Toquem música, qualquer música. É sempre divertido.
 

Beck é cantor e compositor
Este texto foi feito para um dos fã-clubes de Beck, o Loser Legion (Washington, DC),  traduzido por Thales de Menezes e publicado na Folhateen, da Folha de São Paulo, anos atrás.