Matérias Antológicas

Coletânea
por Álvaro Pereira Júnior

Se eu fosse juntar todas as colunas do Álvaro Pereira Júnior que acho antológicas, acredito que teria umas cincoenta e ia dar trabalho. Uma olhadela rápida, a memória relembrava o texto e, no final, ficaram estas onze colunas. Como reserva, ou técnico, se você preferir, temos a "Quando o Rock Fala Ao Coração", que já é matéria antológica do S&Y quando o S&Y ainda era on paper. 

De resto, pensei até em incluir fotos para ilustrar as matérias. Besteira. O que importa, aqui, são as palavras que valem a pena.

Marcelo Costa
Editor


04/03/96
O significado do rock

Eu quero me redimir, o mundo gira, me fale sobre a sua vida, me fale sobre a MINHA vida, a dor é minha irmã. Você me perdoa? 

A banda se chama Electrafixion. As linhas cima não passam de uma colagem de trechos de letras do primeiro álbum deles,"Burned". É das poucas coisas que tenho ouvido.

São frases que se você tem mais de 15 anos e mais de quatro neurônios, já deve ter usado. Não necessariamente nessa ordem. Não necessariamente no mesmo dia. À frente do Electrafixion, Ian McCulloch e Will Sergeant, respectivamente vocal e guitarra da banda fundamental da minha geração, Echo and the Bunnymen.

Que McCulloch e Sergeant tenham voltado a trabalhar juntos é uma dádiva. Agradeça aos céus. Reze voltado para Liverpool. "Quando você diz que isso é amor/ Quer dizer o reverso do amor?" Echo and the Bunnymen ("Back of Love").

Qual a essência do rock? Dor adolescente? Mentes sossegadas? Almas em fogo?

Seja qual for, o fato é que McCulloch a conhece bem. Seus personagens vivem arrependidos, não sabem para onde vão nem por que nasceram. Escondem-se atrás de guitarras pontiagudas. Sim, as guitarras. Sergeant as maneja com nii-lirismo que parece intocado com o passar dos anos (e não são poucos). Pena que a voz de McCulloch tenha perdido o viço, a profundidade (são mais de 15 anos; quem não perdeu?). Você não sabe como é duro perceber que os caras que a gente sempre admirou são mortais. Depois, fica ainda pior: você se toca que você mesmo não tem cadeira cativa no fértil globinho azulado.

No mundo pós-grunge, parece vigorar a idéia de que o rock não passa de esporro puro, de esculhambação e ponto. Nesta coluna que estréio hoje, vou defender até a morte o contrário. É preciso que o rock tenha um significado maior, para além do suor e do chacoalhar de cabeças. É preciso que caras como Ian McCulloch apareçam de vez em quando para dizer umas verdades na nossa cara.

Mas calma. Sei que nada é mais intragável do que rock "sério". Por isso, a grandiosidade sinfônica dos Smashing Pumpinks, a pretensão "antropológica" dos Paralamas, coisas esnobes assim, vão receber pauladas sem dó. Informação, alguma opinião, muita música, um pouco de literatura. Essa é a receita que pretendo seguir neste espaço.

Um vôo cego. Mas é tarde demais para saltar. Você chegou até aqui. Estamos juntos nessa.

09/09/96
    Lou Reed e a voz da experiência

"No rock'n'roll, a diferença de idade entre artista e platéia não é grande. Mas, infelizmente, as pessoas na quarta fila imaginam que aqueles em cima do palco saibam de coisas que elas não sabem. E isso não é verdade."

As frases acima são de Lou Reed, escritas em 1970 na revista americana "ZigZag".

Obviamente, não valem mais nada. Pelo menos no show que Reed deu sexta-feira passada no Rio, a diferença de idade entre ele e seu público era significativa. E Lou não pareceu nada desconfortável no papel de alguém que sabe muito maisdo que seus admiradores. O que é absolutamente OK, porque verdade.
    *
"Quando os Rolling Stones apareceram, logo gostamos deles. Eles faziam a mesma coisa que nós, só que melhor."

Essa é do Sterling Morrison, o baixista do Velvet. A comparação com os Stones continua apropriada, claro. Só que agora quem leva vantagem é Lou Reed. Ao contrário de Mick Jagger e seus companheiros, Lou tem coragem de parecer velho, feio, de não bajular platéias, de tocar versões ultra-simplificadas de suas canções clássicas.
    *
"A música moderna começa com o Velvet, e a influência e as implicações do que eles fizeram vai durar para sempre... A única coisa errada... seria romantizá-los demais."

Legal ver que essa análise, feita pelo crítico americano Lester Bangs ainda nos anos 70, permanece atual. Na uma hora e meia de show, Lou Reed, embora não diga uma palavra entre as canções, parece o tempo todo jogar na nossa cara que "olha, eu vivi de monte, vi um monte de coisas, fiz um monte de coisas, mas isso aqui em cima é só uma banda de rock and roll, OK? E isso não quer dizer grande coisa".
    *
Quer dizer... nem sempre. Algumas canções mais recentes dele entram numa discurseira dura de aguentar. Uma vez li uma crítica contra um de meus escritores favoritos, o americano Jim Harrison, em que o resenhista acusava seus livros de parecerem "cartas que a gente gostaria que tivessem sido escritas para outra pessoa". Deu para entender?
    *
De repente, o rock and roll passa a ter história. E os personagens dela, ainda vivos, maltratados, passam por nós. Seus gritos vêm de algum ponto distante, não se dirigem a ninguém, ecoam no vazio, procuram significados. E às vezes acham. Mas só por uma noite.

18/11/96
As feias que me perdoem

Você já deve ter escutado: rock é coisa de homem. Ou então, de alguém mais moderninho: rock é coisa de gay. E vamos, aqui, radicalizar: rock pode - e deve - ser coisa de mulher. A partir dessa crucial constatação, publicamos hoje uma lista das 20 roqueiras mais maravilhosas do momento.

Contei com as sugestões de Paulo César Martin (do "NP"), Zeca Camargo (Rede Globo) e, principalmente, Fábio Massari (MTV), que no último verão europeu conferiu várias beldades ao vivo.

Deve-se ao testemunho do Massari, por exemplo, a ausência de PJ Harvey ("está totalmente anoréxica").

A classificação final é de responsabilidade do colunista.

1ª colocada - Cristina Martinez, do Boss Hog. Mais mignon pessoalmente do que as fotos sugerem, é linda e ainda toca em uma das melhores bandas americanas. Infelizmente, tem marido: Jon Spencer, do Blues Explosion.
Vice - Laura Ballance, do Superchunk. A garotinha que mal conseguia segurar o baixo "amulherou-se" e, com cintilantes olhos azuis, despedaça corações.
3ª - BB Mets, do Jolt. Inglesa com uma flor tatuada no seio.
4ª - Sarah Shannon, do Velocity Girl. Doçura pura.
5ª - Tanya Donelly, ex-Belly. Pequenina, mas de grande talento.
6ª - Margo Timmins, do Cowboy Junkies. Deusa canadense.
7ª - Sarah Cracknell, do Saint Etienne. Loira fatal.
8ª - Gwen Stefani, do No Doubt. Broto da hora. Destaque para o umbigo.
9ª - Hope Sandoval, do Mazzy Star. Fotos recentes denunciam uma barriguinha, mas nada muito sério.
10ª - Louise Rohdes, do Lamb. Magra, loirinha, frágil.
11ª - Natalie Merchant, ex-10.000 Maniacs. Balzaca de primeiro time.
12ª - Shirley Manson, do Garbage. Ruiva um pouco fashion demais, mas com estilo.
13ª - Justine Frischmann. do Elastica. Faz o gênero "menininho". Tudo bem.
14ª - Miki Berenyi, do Lush. O rosto mostra cansaço, mas o shape continua dez.
15ª - Liz Phair. Meio cabeça, mas bonita.
16ª - Audrey Gallagher, do Scheer. Beleza etérea.
17ª - Carol van Dijk, do Bettie Serveert. Mais uma ruiva, Beleza diferente.
18ª - Toni Halliday, ex-Curve. Mulher misteriosa.
19ª - Nina Persson, do Cardigans. Princesinha debutante.
20º - Kim Gordon, do Sonic Youth. Massari jura que a quarentona ainda bate um bolão.

02/09/96
    Please Mr. Postman 

Cartas, cartas e mais cartas! É hora de saber o que os leitores estão achando desta coluna. Preparar... apontar... fogo! Alguém que se assina "Floyd" e me chama de "mano" escreve para dizer que eu errei ao ser irônico com o Metallica, quecortou o cabelo e abaixou o volume. "Floyd" acha que a mudança no Metallica foi uma "evolução". "Floyd" é mulher. Tem 18 anos e uma letra difícil de entender.

Nilton Nunes (São Paulo, SP) pega pesado. Diz que a coluna é de mau gosto e nada informativa. Nilton, você pode não curtir, mas eu me esforço para dar o máximo possível de informação. Vivo atrás de coisas novas, obscuras, desconhecidas.

Como contraponto, a Tatiana Nunes de Oliveira (Campinas, SP), de 17 anos, diz que sou um dos colunistas preferidos dela (os outros são o Simão e o Jabor). Ela me acha "autêntico". Beleza. A Tatiana perguntou sobre as chances de o Rush vir ao Brasil. Que eu saiba, o problema não é tanto grana, mas falta de locais com acústica que eles considerem decente.

O Marcelo Costa (Taubaté, SP), 26 anos, gosta do jeito que eu escrevo, que ele julga parecido com o do André Forastieri. Obrigado, Marcelo. O Forastieri é um grande amigo, e fico feliz de ser comparado a ele.

Ainda no campo dos elogios, a Danúsia Alves (Ourinhos, PR), 15 anos, diz que adora a coluna. Concorda com minhas críticas à fase "light" do Metallica e também acha o Soundgarden o máximo. Ela só ficou bronqueada de eu botar o Beck no "eject" sem ao menos ouvir o disco dele. Danúsia, um amigo me deu a definição perfeita do Beck: "Se ele fosse brasileiro, seria carioca". Sobre o Pariah, que você perguntou, não é muito minha praia, mas vou dar uma pesquisada.

De Curitiba, recebo carta de Sérgio Luiz da Silva, que diz ter pena da garotada que lê minha coluna. Entre outras delicadezas, me chama de "calhorda" e diz que, "infelizmente", sou jornalista. Pelo estilo fascistóide e autoritário, sou capaz de apostar que o Sérgio é jornalista também, e não exatamente bem-sucedido.

A Camilla Chagas (Pindamonhangaba, SP), roqueira convicta de 17 anos, anda passada com a ascensão da dance music e aproveita para malhar as rádios da região onde ela mora, que ignoram o rock.

O Guilherme Carnaval (Uberlândia, MG) tem 20 anos e é mais um fã do Dire Straits. Guilherme, valeu, mas nem eu aguento mais essa polêmica...

Por fim, recebo o "Indie C". Como o nome diz, um grande catálogo dos fanzines feitos no Brasil. O endereço é rua Júlio Dantas, 447, Osasco, SP, CEP 06273-030. Acabou mais uma coluna epistolar. Até a próxima.

02/12/96
Popmaníacos vêem a vida passar ao longe

Quais os cinco melhores álbuns gravados por um artista cego? Os cinco melhores episódios da série de TV "Cheers"? Difícil? Então vamos tentar outra pergunta: quais as melhores faixas um do lado um de qualquer álbum?

Enquanto você pensa, Rob Fleming já tem a lista dele: "Janie Jones", do Clash; "Thunder Road", Bruce Springsteen; Smells Like Teen Spirit", Nirvana; "Let's Get it On", Marvin Gaye; "Return of the Grievous Angel", Gram Parsons.

Rob Fleming (35 anos até a página 213, 36 dali em diante) é protagonista de "High Fidelity", o romance mais recente de Nick Hornby, o escritor britânico do momento. O livro, ainda inédito no Brasil, trata do dia-a-dia de três homens obcecados por cultura pop a ponto de terem dificuldade para separá-la de suas próprias vidas.

Rob é dono de uma pequena loja de discos em um bairro esquecido do norte de Londres. Com ele, trabalham Barry, 33, e Dick, 31, dois maníacos por música cujo lema de vida resume "High Fidelity": "O que importa é do que você gosta, não como você é" (em inglês soa melhor: "What counts is what you like, not what you are like").

Passam o tempo testando os conhecimentos pop um do outro, daí as infindáveis lista-de-cinco (cinco melhores músicas de Elvis Costello; cinco bandas ou artistas que teriam de ser fuzilados se acontecesse uma revolução musical; cinco melhores músicas para dançar).

Rob acabou de ser dispensado pela namorada, Laura. Fica triste, mas não aniquilado. Afinal, ela nem está entre os cinco maiores foras (Alison, Penny, Jackie, Charlie, Sarah) que levou na vida. Quase ninguém entra na loja de Rob, Barry e Dick. E os poucos clientes que se arriscam ouvem ironias e ofensas de Barry se o disco que procuram não o agrada.

Nem passa pela cabeça dos três que o negócio poderia ser ampliado, que poderiam atrair mais público, se, por exemplo, promovessem show na loja.

Eles têm idade suficiente e uma existência suficientemente vazia para saber que a vida está sempre em outro lugar. Emoções, só por empréstimo, osmose, ou tateando entre as guitarras distorcidas de uma canção de Neil Young. Dos três, Rob é o único que mantém algum contato com a chamada "vida real": afinal, ligou-se a Laura, e contabiliza já ter levado para a cama 17 mulheres, número que considera razoável.

Barry e Dick, não. Este último ainda tenta, consegue até uma namorada, imediatamente ridicularizada pelos outros por gostar de Simply Red. A vida de Barry resume-se à loja.

Pop e lírico, "High Fidelity" pode ser entendido também como um ensaio sobre a tolerância, ou sobre a arte de ficar calado. É um livro para eternos perdedores, gente que nunca foi tirada para dançar nas festinhas adolescentes, para aqueles que passam sábados à noite sozinhos em casa ouvindo Velvet Underground. Será que High Fidelity é para você?

16/12/96
Nasci em 62 e envelheço na cidade

O Ira! nunca foi de minhas bandas preferidas. Eu achava tudo muito parecido com The Jam e não gostava das letras, infantis demais. Além disso, a cena paulistana de rock nos anos 80 me transmitia uma sensação incômoda de panelinha, ação entre amigos. Parecia haver uns 20 músicos, que se multiplicavam em centenas de bandas.

Então, se o Ira! jamais caiu no meu gosto, por que me pego cada vez com mais frequência cantarolando "feliz aniversário/ envelheço na cidade", ou assobiando junto quando o rádio toca "eu morreria por você"?

Associação de memórias é a resposta mais imediata. As canções do Ira! desencadeiam lembranças de ter 22 anos e se julgar eterno. De achar que é só ficar esperando para que coisas estupendas nos aconteçam e mudem nossa vida para sempre.

Sob esse raciocínio, o Ira! não tem valor em si, mas pelo menos nos atira de volta a um tempo de descobertas em que, como dizia o escritor americano William Faulkner, os verbos conhecer e aprender não davam lugar a um terceiro: o aterrador acomodar-se (também conhecido nestes trópicos tão tristes como "ter jogo de cintura"). Mas acho que não é só isso.

Nas palavras do crítico/sociólogo britânico Simon Frith, "parte do prazer da cultura pop é falar sobre ela". E eu acrescentaria: uma parte ainda maior é lembrar-se.

Com o distanciamento que só o tempo e a vida em outra cidade permitem, vejo hoje que o Ira! refletia acima de tudo São Paulo, cidade sombria e ansiosa, anticontemplativa até a medula. Metrópole monstruosa, mix bizarro de pobreza terminal e inferno high-tech, São Paulo é uma cidade onde jovem nervoso gosta de rock e ponto final. Onde em estádio de futebol é possível encontrar, entre a galera dos Gaviões da Fiel, um cidadão da periferia vestindo camiseta da banda ultrapesada Poison Idea. (fenômeno parecido aconteceu no show dos Sex Pilstols do Ibirapuera: na platéia, uma figura que parecia vinda diretamente de um romance de Guimarães Rosa usava chinelos e camiseta da banda canadense Skinny Puppy, barulheira séria).

De cada viela cinza, dos salões de prédios de classe média, dos estúdios improvisados e janelas dos quartos de adolescentes nas manhãs de sábado, a São Paulo inquieta produz e respira rock and roll. Quase sempre derivativo, de qualidade rasa. Mas quem se importa? É movida a três ou quatro acordes de guitarra que São Paulo toma forma. Uma forma, para mim, nostálgica.

A nostalgia é tão inevitável quanto a morte e talvez isso explique o "revival" de Ira! em algumas rádios paulistanas. A angústia de ter de cumprir serviço militar ("eu tentei fugir, não queria me alistar/ Eu quero lutar, mas não com esta farda"), a ilusão de que o futuro é essencialmente luminoso ("nasci em 62!")...

Estava tudo lá, mas demorou um pouco para cair a ficha.

09/06/97
    Amores de verdade, proibidos e torturantes 

"It's a teenage dream/ to be seventeen/ and all wrapped up in love" Bay City Rollers

Namoradas e namorados, saibam que o amor é a força que move o rock and roll.

Não o amorzinho sanitizado, cabeça-zona-sul, que deu forma, por exemplo, ao rock brasileiro dos anos 80 ("você não soube me amar", "ursinho Blau-Blau", "não posso mais ficar assim ao seu ladinho", "não há nada de novo, ainda somos iguais").

Falo de rock de verdade e amores proibidos, torturantes. Sofrimento e dúvida.

Do amor sob o ponto de vista da genial Thalia Zedek (vocalista do Come), habitante de um universo sombrio, onde as coisas saem quase sempre erradas e paixão e martírio se confundem.

Das emoções em pedaços de Ian Curtis (1956-1980), o poeta suicida do Joy Division que morreu há quase 20 anos e cuja influência ainda angustia bandas mundo afora.

Da libido balofa de Elvis Presley, dos vabagundos sem rum cantados por Neil Young, das perversões de Lou Reed e o Velvet Underground.

Do amor com cara de mau dos Rolling Stones; dos jovens inseguros, trancados em casa, de Brian Wilson e os Beach Boys.

"Mão na luva/ A gente pode ir aonde você quiser/ E tudo depende de você/ Ficar sempre perto de mim." Isso é "Hand in Glove", dos Smiths, aberta a todas as interpretações possíveis, mas quem se importava ou percebia, nos introspectivos anos 80?

Da voz única de Chrissie Hynde, dos Pretenders, autora de baladas que nos faziam, como escreveu há 15 anos um velho jornalista brasileiro, querer que as estrelas fossem de vidro, para que pudéssemos reduzi-las a pó, uma a uma.

Do amor ao som de rock nos bailinhos de garagem em sábados gelados, do som triste para ouvir sozinho(a) em casa.

Da paixão mutuamente destrutiva de Sid Vicious (1957-1979), dos Sex Pistols, e sua mulher, Nancy Spungen. E até do arranca-rabo 24 horas por dia entre a megera Courtney Love e seu querido suicida Kurt Cobain (1967-1994), a alma do Nirvana.

Das baladas brutalmente honestas dos Foo Fighters, do videoclipe mais maravilhoso de todos os tempos, "Dirty Boots", do Sonic Youth.

Do amoral Jerry Lee Lewis e seu casamento (o terceiro), com uma prima de 13 anos de idade.

Do reverso do amor, dos lábios de açúcar cantados por Ian McCulloch e o Echo and the Bunnymen.

Das adolescentes alucinadas que morrem de amores por bonitinhos sem talento, como Menudo, Bush, Bon Jovi ou até os Bay City Rollers (escoceses que fizeram sucesso na década de 70).

Dos bêbados com bom humor do Reverend Horton Heat, da melancolia infinita do sempre derrotado Roy Orbison.

A vida é louca e você sabe, baby. Quem avisa é Iggy Pop.

   18/08/97
A trêmula Isabel Monteiro emociona em noite londrina

Não sei por que Isabel tremia tanto. As mãos vacilavam ao segurar o microfone, e os pés se mexiam sem parar dentro dos sapatos pretos. No começo, ela usava um enorme chapéu de caubói, meio disfarçada, mas logo o atirou ao chão.

Isabel é muito pequena (uma das suas músicas até diz "sou pequena demais para me defender") e usa os cabelos presos num coque atrapalhado. Tem trinta e poucos anos, mas aparenta mais.

Isabel é Isabel Monteiro, a cantora brasileira do Drugstore, banda britânica movida a guitarras, desesperança e versos de uma precisão perturbadora.

Vi o Drugstore quarta-feira passada, em Londres, por acidente. O show era do Scarfo, um grupo de britpop, mas o anúncio na "Time Out" prometia também "convidados especiais". Bingo: eles eram Isabel e o guitarrista do Drugstore.

O set de Isabel teve só seis músicas, durou pouco mais de 20 minutos. Mas foi daquelas raras experiências que valem por uma vida.

Ainda de chapéu, ela abriu o show com uma canção provavelmente de Lou Reed (três enciclopédias ambulantes de rock estavam comigo, mas ninguém reconheceu). De qualquer modo, a letra já deixava bem claro qual a praia habitada por Isabel Monteiro: "Digo alô para os drogados, para as prostitutas, para o povo da rua. Eu digo alô para o mundo").

Isabel tinha os olhos transfixados e, controlando os tremores, fitava algumas pessoas da platéia com toda atenção doentia. Segundo número: uma canção nova ("ponha seus braços em volta de mim para eu não cair/ agora sim, não tenho mais medo de nada").

Isabel bebe vários goles de uma garrafa de vinho Beaujolais, guardada perto do pedestal do microfone. Fala um pouco com a platéia, explica que o show é de improviso, que tinha recebido um telefonema à tarde de um amigo que toca no Scarfo e que concordou em dar uma força.

Dispara então um cover demencial de "Black Star", uma canção do penúltimo disco do Radiohead. Isabel acaricia o  microfone ao cantar o refrão, que fala em botar a culpa nas estrelas, no céu que se abre. Beija o guitarrista.

Mais uma música nova, de tema inusitado: a morte do presidente chileno Salvador Allende. Inclinada para a frente, Isabel toca maraca. Mas a força é tanta que ela racha o instrumento, e as bolinhas coloridas correm pelo palco. Ela demora um pouco, percebe o estrago e joga a maraca para trás com classe absoluta.

Uma música antiga do Drugstore, outra nova, e pronto: em menos de meia hora, o show havia acabado.

A Nasa ignorou, os astrônomos não detectaram. Mas na quarta-feira, 13 de agosto, o universo todo girou em torno da Gray's Inn Road, uma rua perto de King's Cross, no centro de Londres. li fica o clube Water Rats. E ali cantava, com emoção sideral, uma brasileira trêmula: Isabel Monteiro.

25/08/97
    Dois dias de luta pela causa do rock and roll 

Dá para ouvir os primeiros acordes de "Rescue", o clássico do Echo and the Bunnymen, mas até chegar ao palco ainda faltam uns 200 metros de caminhada ladeira acima, e o cansaço é torturante. Tudo bem, nós andamos, andamos, andamos. Tudo pela causa do rock and roll, a única que nos resta a 28 meses do ano 2000.

O plano era assistir aos Bunnymen desde o comecinho, mas foi impossível. O show que veríamos antes, em outro palco (na verdade uma tenda, meio escura, meio fosforescente, antro satânico), atrasou. Em outro palco, longe da tenda escura, longe de onde tocam os Bunnymen, os Foo Fighters (de Dave Grohl, ex-Nirvana) botam 25 mil fãs para pular.

Um pouco mais tarde, o Prodigy reduziria a pó todas as fronteiras que ainda pudessem existir entre rock e techno. Um dia antes, o Pavement já tinha mostrado que viver e tocar como nerd também pode ser legal. Os Chemical Brothers (de novo na tenda, o templo do mal) haviam exposto suas veias, onde corre sangue eletrônico. Na barraquinha de "sobrecarga sensorial", vendem-se centenas de comprimidos, todos legais, porém perigosos.

Garotos ingleses compra guaraná brasileiro achando que vai dar barato.

Hambúrgueres horríveis transbordam de gordura, baguetes ótimas nos ajudam a ficar em pé.

Um doido aparece com a camisa do Corinthians e um grupo de amigos bregas fica fazendo bagunça no show dos  Bunnymen. Alheio ao som dos três palcos, o dono de uma barraca põe para tocar Radiohead no último volume. E não entendo por que não me sai da cabeça uma música antiga do Radiohead, "Black Star". E por que ela me faz lembrar de corações de pedra e daquela velha pergunta ("o que é mais fácil, falar ou escrever?").

Botando ordem no caos: essa infinidade de prazeres simultâneos aconteceu no festival V'97, em 16 e 17 de agosto passados. Dois dias de som da melhor qualidade, em Chelmsford, cidadezinha próxima a Londres. E é por causa do V'97 que hoje tem "Escuta Aqui" especial. Você vai ficar sabendo o que aconteceu de mais interessante, as piores loucuras, as bizarrices. Enfim, vai ter a certeza de que lá fora tem uma vida acontecendo. Só que não é a minha nem a sua, baby.

*Angústia de brasileiro
"Aqui, a gente ignora um monte de coisas, mas é só voltar ao Brasil para se arrepender de não ter visto absolutamente tudo."

O comentário, feito por um amigo quase no fim do segundo dia de festival, resume a essência de enfrentar uma maratona dessas. Para o público local, pouca diferença faz perder uma ou outra banda. No ano (ou na semana) seguinte tem mais. Só que, para um brasileiro, a torrente sonora angustia. As pernas mal se movem e os olhos quase não abrem. Mas aí você se lembra que, em breve, vai ter como única opção musical o show acústico dos Titãs. Melhor ficar esperto enquanto há tempo. O V'97 tinha três palcos. Um principal (imenso), outro médio (patrocinado pelo semanário "New Musical Express") e o de dance music (a tal tenda escura e infernal). No segundo dia, por exemplo, meu objetivo era ver, sem falta, três bandas: Foo Fighters, Echo and the Bunnymen e Sneaker Pimps. Só que havia um detalhe cruel, a ser descoberto só em cima da hora: todas tocariam praticamente ao mesmo tempo. Daria para aproveitar 20 minutos de Sneaker Pimps na tenda (aquela), correr para o palco da "NME" e ver os Bunnymen, depois rezar pra pegar um finalzinho dos Foo Fighters no palco principal. Sem chance. O show dos Sneaker Pimps atrasou (foi o único em dois dias a não começar exatamente na hora) e perdemos o começo do Echo. Quando Ian McCulloch deu adeus para a platéia, subimos voando a ladeira, mas o Foo Fighters  mandava os últimos acordes de "This is a Call". 

*McCulloch e ecos passados 

Em qual canto do passado se perdeu a voz de Ian McCulloch? Por que "Killing Moon" parece agora tão pálida? Nada mais faz efeito: o casaco pesado sob um calor de 32°C, o cigarro e o copo inseparáveis. Por quê?

Pouco importa.

Porque ele é Ian McCulloch, e tenho uma dívida com esse cara, que desvendou os nebulosos caminhos do amor para a minha geração. É preciso ficar até o fim, mesmo que mal se consiga ouvir a guitarra de Will Sergeant. Mesmo que Les Pattinson toque seu baixo sem a mínima empolgação. Uma música nova, "Nothing Lasts Forever", faz o show decolar. Um copo de cerveja voa e acerta McCulloch no peito, mas ele canta "Do It Clean" e tudo bem.

*Pavement honra os EUA 

"Stereo! Stereo!" É o Pavement fazendo o melhor show que vi no V'97. Estranhamente, esses californianos foram escalados para o palco principal, apesar de quase desconhecidos na Inglaterra. Começaram com uma ironia: "Somos um das poucas bandas americanas deste festival. Esperamos honrar a nossa pátria." Foi um show de esquisitice cool. Steve Malkmus enroscou a guitarra no pedestal, derrubou tudo e nem percebeu. Quando tocou a clássica "Perfume V", ficou todo mundo muito feliz.

*Prodigy deixa 40 mil loucos 

O último show do festival, no domingo à noite, foi do Prodigy. Loucura para 40 mil devotos que pularam uma hora e meia direto. Estranho: o formato foi de show de rock. Longos intervalos entre as músicas, quando o vocalista Maxim Reality (de saia, cinturão de gladiador e sem camisa) aproveita para gritar asneiras ("Are you ready to rock?"). A banda sabe que tem o público nas mãos e se dá ao luxo de esconder seu maior hit, "Breath", como terceira música do set. No fim, a certeza: algo muito interessante está acontecendo no pop. E o Prodigy saiu na frente.

15/09/97
Echo and the Bunnymen domina a correspondência

"Dá-me, ó dor, tua mão. Vamo-nos escondendo." Isso é Charles Baudelaire (1821-1867), citado pela Lúcia Sano, leitora querida desta coluna. Lúcia não tem mais do que 15 anos e escreve oniricamente bem.

Hoje, como já deu para perceber, é dia de responder às cartas. Vamos lá!

Muita gente escreveu por causa do Echo and the Bunnymen, que lançou há pouco "Evergreen". A Corina Camizão (São Paulo, SP), por exemplo, decreta: "Vida longa aos anos 80!". O(a) misterioso(a) Shu S. diz que gostar dos Bunnymen é a única coisa que temos em comum. Marcelo Bressanin (São Paulo, SP) também cita o Echo como um de seus preferidos. Ele lamenta que a garotada de hoje não se ligue em música romântica, mas se consola com um trecho de letra do Echo: "Nothing lasts forever" (nada dura para sempre).

E mais Bunnymen: Roger Parker (São Vicente, SP) gosta dos caras, mas não da coluna. Paciência. A Renata Castilho (Osasco, SP), que adora Titãs, lembra de cartas enfurecidas que me mandou e reconhece que exagerou um pouco.

Michele Pahl (Joinville, SC) é outra que revela ter ficado com raiva de vários textos, mas acha que agora melhorou. Ela, que escreve com elegância, gostou de quando falei sobre Echo (de novo!), Clash e Beach Boys.

Cláudia Cestarolli (São Paulo, SP) pergunta por que nunca trato do Rush. É que progressivo não tem muito a ver com este espaço.

Agora escute esta: o Marcelo Silva Costa (Taubaté, SP) conta que, inspirado pela coluna sobre o festival inglês V'97, resolveu mandar um e-mail para um brotinho de quem ele gosta, mas não cruzava fazia um tempo. Espero que tenha rolado.

Devanir Magi (Santo André, SP) adorou quando escrevi sobre um show do Drugstore em Londres. São muitas as cartas com elogios, mas por falta de espaço vão ficar para a próxima.

Agora, os bronqueados.

Franco Omori pergunta se voltei do Rio para SP porque fui demitido. A mesma dúvida tem Marcelo Marques (Arujá, SP). Não.

Fernando R. reclama de eu criticar Engenheiros do Hawaii sem conhecer direito a banda. É verdade.

"Você é simplesmente ridículo", diz Jairo Siqueira (Passos, MG). Da mesma cidade, Eduardo da Silva reclama de meu "preconceito contra a MPB".

Fã de rock progressivo, Daniel Gomes (Botucatu, SP) diz ter "o saudável hábito de não ler a coluna". Ana Paula Mira (Curitiba, PR) e Armando Fogerty (Juiz de Fora, MG) não aceitam meu desinteresse por Rubem Fonseca.

Eduardo Ramos (Piracicaba, SP) me qualifica de "antinacionalista".

Só para não encerrar em clima pesado, vem a carta do Dagoberto Donato, que vai estudar jornalismo por influência minha e de outros dois jornalistas: Andrés Forastieri e Barcinski. Dagoberto, não sei se te cumprimento ou dou pêsames. De qualquer modo, um abração.

07/10/97
    Mulheres, clipes e shows que valem a pena

Madrugada úmida e fria, na TV espectadores fazem seus pedidos de videoclipes. Liga uma menina de 16 anos, de Londrina  (PR). Ela quer "qualquer um do Sonic Youth, menos 'Bull in the Heather'". Alguém tem o bom gosto de atender, programando "Superstar", a versão estonteante do Sonic Youth para a triste melodia dos Carpenters. É nesse clipe que a baixista Kim Gordon aparece tocando bateria, como Karen Carpenter. Numa cidade perdida de um país esquecido, alguém de 16 anos quer ver Sonic Youth. É uma esperança.
    *
Falando na quarentona Kim Gordon: na recente edição da "Rolling Stone" sobre mulheres no rock, ela deu um depoimento irônico e bem-humorado. Pergunta: "Algum conselho que você gostaria de dar?" Resposta: "Não deixe que suas paqueras se transformem em obsessões". Anote.
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Em compensação, na mesma revista, Shirley Manson, do Garbage, mostra que beleza e sabedoria compõem mesmo uma equação improvável. Uma página inteira e nada que valha mais do que dois segundos de reflexão. Pena.
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Throwing Muses acabou de vez. A banda da região de Boston que transformou esquizofrenia em rock and roll cambaleava havia alguns anos. Primeiro, saiu Tanya Donnely, que formou a Belly. A irmão de criação dela, Kristin Hersch, tentou carreira solo, depois ressuscitou a banda e agora resistiu. Throwing Muses fazia música torturada para solitários. Seu fim representa uma esperança a menos para os jovens de sangue nas veias.
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A jornalista Denise Bobadilha, colaboradora da Ilustrada em Londres, manda e-mail contando sobre um show que viu no estádio de Wembley: Radiohead, com abertura de Teenage Fanclub e DJ Shadow. O Radiohead tocou por mais de duas horas, sem esquecer uma única faixa de sua recente obra-prima, "Ok Computer". DJ Shadow fez a rapaziada viajar, enquanto Teenage Fanclub despejou, com suas guitarras, os habituais 35 minutos que valem por uma vida.
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Estão sendo relançados nos Estados Unidos dois álbuns do lendário Pussy Galore, "Right Now!" e "Dial M for Motherfucker". Encomende na sua lojinha preferida, e entenda onde niilistas contemporâneos, como o Atari Teenage Riot, aprenderam a gostar de barulho.
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A revista americana "Alternative Press" informa que Scott Wieland, ex-cantor do Stone Temple Pilots, está gravando seu primeiro álbum solo, depois de ser chutado da banda por dependência incontrolável de heroína. Segundo Wieland, o disco será "muito experimental". Cuidado.
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O clipe de "Everlong", dos Foo Fighters, é legal daquele jeito mesmo, ou tudo não passa de um sonho?