O Retorno 
por Fábio Bianchini

Capítulo 1

No primeiro dia do segundo mês do último ano do milênio, Richey acordou cedo. Não sabia bem por quê. Fazia tempo que não tinha pressões, compromissos ou horários. Naquela manhã ensolarada de Goa, ele mais uma vez não tinha absolutamente nada pra fazer. Pegou seu caderno de anotações e seu violão. Primeiro de fevereiro de 2000. Fazia cinco anos que Richey tinha deixado tudo para trás. A família, as fofocas e briguinhas da cena musical britânica, o posto de guitarrista dos Manic Street Preachers, tudo. Principalmente a velha angústia, que sempre o acompanhara.

Agora ela parecia distante. Como o garoto mais velho e forte do colégio, que aterroriza qualquer infância, mas depois, com a complacência do tempo, torna-se uma lembrança quase simpática. Nesses cinco anos, ele relaxara, sossegara a mente. E ainda aproveitou para aprender a tocar guitarra. Olhou para os braços. A tatuagem “Useless Generation” ainda estava lá, assim como as marcas do “4 Real” feito com uma lâmina, tantos anos antes. Richey sentiu-se como se estivesse olhando cartões postais de outro mundo, bem mais triste. Em comparação, pensou, o mundo que tinha agora era um mundo bom. Um mundo com o qual ele podia conviver. Voltar a relacionar-se com as pessoas, com os negócios, com a própria psique. Cinco anos. Decidiu que era hora de voltar. Empacotou seus pertences, foi pro aeroporto e pegou o primeiro vôo pra Cardiff.


Capítulo 2

Antes desse capítulo, uma explicação é importante: TODOS os popstars, desaparecidos ou não, têm os telefones de TODOS os outros popstars de mesma popularidade. Todos.  Esses números estão num catálogo a que só popstars têm acesso. São como telefones vermelhos, de que nenhum jornalista jamais ficou sabendo.

Quando chegou a Gales, Richey ficou em dúvida se devia ou não ligar pra sua banda. Afinal, depois do sumiço inesperado, tanto tempo sem explicações ou sinal de vida,  eles poderiam ter ficado magoados. Pensou um pouco e decidiu telefonar pro baixista Nicky Wire, que sempre foi seu melhor amigo entre os Manics.
- “Alô”
- “Quem está falando?”
- “Como, quem está falando? Sou eu, Richey”
- “Richey? Que Richey?”
- “Como, que Richey? Não lembra mais de mim? Richey. Eu tocava com você.”
- “Richey? Escuta aqui, rapazinho. Essa piada não tem graça. Richey está desaparecido e não tem graça nenhuma ficar me passando trote.”
- “Porra, não está reconhecendo a minha voz?”
- Tá pensando o que? Que nunca nenhum engraçadinho me telefonou se fazendo passar por Richey e imitando a voz dele? Por acaso você tem como provar que é o Richey de verdade?”
- “Claro que eu posso. Lembra aquelas entrevistas, quando a gente falou que nossa grande motivação era os dez anos do punk, que a gente curte Public Enemy e Guns’n’Roses? Tudo cascata. O que a gente gosta mesmo sempre foi Echo and the Bunnymen, Primal Scream das antigas, Shop Assistants, Smiths e tudo o que a Creation lançava nos anos 80. E tem mais: a gente falava que Slowdive era pior que Hitler, mas tínhamos todos os discos”.
Nicky ficou assombrado por alguns segundos, que pareciam eternos. Até que...
- “Richey. Você está onde?”
- “Tô aqui no aeroporto. Cansei de viver escondido. Resolvi voltar. Voltar pra banda. Aprendi a tocar guitarra e tudo.”
- “Voltar pra banda?”
- “Claro.”
- “Errr... é, legal. Bom... espera um pouco, eu vou ligar pro Sean e pro James e já te ligo de volta”.
- “Não, peraí, a gente tem que...”
(clic)
Richey ficou mudo, olhando para o fone sem saber o que pensar.


Capítulo 3

Quinze minutos depois, Nicky telefonou pra Richey.
- “Oi, Richey. Aqui é o Nicky”
- “Oi. E aí, quando é o próximo ensaio?”
- “Pois é. Tem uma coisa meio chata que eu preciso te falar. Sabe como é essa coisa de showbusiness. A gente tava conversando e... cara, não vai dar pra você voltar pra banda. Ia ficar muito ridículo. Os Manic Street Preachers estão numa nova fase, agora a gente tá mais maduro, mais crescido, falando de coisas importantes. Finalmente nossa obra está sendo levada a sério. Aquelas atitudes provocativas, aquela depressão toda, não cabem na nossa nova proposta”
- “Nova proposta? Que nova proposta? Que história é essa?”
- “Além do mais, Sean e James acham que você só voltou por causa dos elogios que a gente recebeu pelo último disco.”
- “Último disco? Vocês lançaram alguma coisa depois do Holy Bible? Lançaram alguma coisa sem mim? E as letras?”
- “Ah, Richey. Não se faz de desentendido. Outra hora a gente se fala. Até mais”.
(clic)

Richey, obviamente, não estava se fazendo de desentendido. Não sabia mesmo o que estava acontecendo. Levados a sério? Como assim? Na dúvida, comprou os tablóides e conferiu: I Love Hoovering, o último disco, estava sendo elogiadíssimo.  Toda a imprensa musical curvara-se aos Manic Street Preachers, destacando a serenidade e a tranqüilidade da banda. Gastava-se páginas e mais páginas falando dos arranjos orquestrais e participação de Billy Bragg no single “Golfing is fine”, das obras sociais em que a banda envolvia-se e do show de lançamento, com abertura da Beta Band.

Só um assunto competia com os Manics: Oasis. Os rumores eram de que o disco estava pra ser lançado, uma semana depois de sair o novo My Bloody Valentine. Mas a banda e a gravadora despistavam, não confirmando nem negando nada. Pior: o Oasis ainda não tinha anunciado o substituto do guitarrista Bonehead. Aparentemente, a vaga ainda estava disponível.
-      “O Oasis está precisando de guitarrista?”, sorriu Richey. “Então é isso. Nicky e James vão ver só uma coisa”.


Capítulo 4

- “Alô? Noel?”
- “Sim. Quem está falando?”
- “Aqui é o Richey, dos Manic Street Preachers. Quer dizer, ex-Manic Street Preachers”
- “Voltou? Onde é que você andava, rapaz?” (nota do autor: não cabe aqui a pergunta “se Nicky, que era amigão de Richey, não reconheceu-o e custou a acreditar nele, como é que Noel logo o fez?” Que tipo de pergunta é essa? A resposta é óbvia e se alguém perguntar isso, significa que é tão paspalho que merece ficar sem saber).
- “Ah... andava por aí. Mas isso não vem ao caso. O que interessa é o seguinte: tô sabendo que o Oasis é uma banda que tá precisando de guitarrista. Bem, eu sou um guitarrista precisando duma banda. O que me diz?”
Noel não disse nada. Avaliou prós e contras. Um ex-guitarrista dos Manic Street Preachers? Como se Liam já não fosse confusão suficiente. Por outro lado, o convite feito a Johnny Marr tinha sido um fracasso completo. E na verdade, não faria grande diferença. Enquanto o Oasis tivesse ele compondo e Liam cantando e babando, pensou, tanto fazia quem tocasse junto. Além disso, as vendas dos últimos discos tinham sido fraquinhas; um bom golpe publicitário não poderia fazer mal a ninguém. O Oasis sempre gostou de atitudes provocativas que atraíam a mídia. Não havia dúvida de que Richey era bom pelo menos nisso.
- “Considere-se dentro. O trabalho começa semana que vem.”
- “Ensaio ou gravação?”
- “Não, a parte que interessa”
- “Show? Já?”, excitou-se Richey.
- “Nah. Entrevista coletiva”.


Capítulo 5

A coletiva foi um sucesso. Richey brigou com Liam em público, fez mistério sobre sua ausência prolongada, falou mal dos Manic Street Preachers e do REM. Mas o ponto alto foi no final: por mais que todos afirmassem que Richey tinha o espírito do Oasis e se encaixava na banda, o repórter Steve Lamacq insistia em não acreditar. Pior, dizia que era tudo uma farsa e as pessoas não acreditariam que aquilo era pra valer. Richey não teve dúvida: sacou um estilete e escreveu no braço “Blur é uma merda e o corno do Damon levou um pé na bunda da namorada por causa do Brett Anderson”. Teve que ser em letras pequenas para caber tudo e ficou difícil de ler, mas a imprensa adorou.

Só que as coisas não deram certo por muito tempo. As baixas vendas do novo álbum, intitulado apenas Oasis, colocaram muita pressão sobre a banda, principalmente Noel, acusado de ser o responsável pelo fracasso ao insistir em fazer um disco inteiro de trip hop. Mas também sobrou para as letras de Richey: os antigos fãs diziam que o Oasis tinha perdido a qualidade poético-literária do texto de Gallagher. A turnê americana que se seguiu foi um desastre ainda maior: além de reclamar muito de tocar maquiado e vestido com calças colantes de oncinha, Liam derramou cerveja nos livros de filosofia de Richey enquanto assistia um jogo de futebol na TV. 

Foi o fim da picada. Numa troca de avião em Houston, Texas, Richey simplesmente não apareceu. Foram procurá-lo no hotel, mas ele não estava lá. Tudo o que acharam foi um jogo de bandejas e baixelas de prata, presente de uma fã. Telefonaram para a família, mas esses, mesmo...  não sabiam nem que ele tinha voltado. Logo concluíram que as buscas eram inúteis. Um cobrador de ônibus afirmou tê-lo visto correndo descalço e tocando violão no Mississipi, mas ninguém acreditou. Só restou ao Oasis seguir sem Richey. Com Slash na guitarra, entrarariam em uma fase mais madura e reflexiva, que ainda renderia muitos elogios da crítica e boas colocações nas paradas.

FIM