Manoel de Barros

Do capítulo descobertas tardias. 

Só fui conhecer Manoel de Barros quando o poeta estava lançando seu décimo terceiro livro, "Livro Sobre Nada". 

Como definir? Uhmm, do capítulo correspondência Ballvé/Costa, uma página de jornal amarelada datada de 7 de agosto de 1999 traz com esferográfica azul o seguinte recado: "Má, achei linda está entrevista, e olha que coisa o desenho no meio".

O desenho em questão na página central do caderno "Especial Infanto Juvenil" do Jornal do Brasil trazia uma pessoa sentada em uma árvore lendo um livro. Poesia visual, entende. 

Na entrevista, Manoel de Barros diz que "não é confortável para a poesia ser comportada. É muito melhor que seja incorfomada. Os absurdos, os despropósitos são bens da poesia. O bom senso é sempre uma censura à poesia. O bom senso pertence às ciências, às gramáticas, às matemáticas. Poesia é uma expressão fontana: como o amor, a água, o sol. Fazer que o poema defenda teses é uma aberração". Um pouco antes o poeta já havia dito: "gosto de furar gramáticas, de entortar sintaxes". Um pouco depois: "A criança está disponível para a poesia. Ao ponto de poema. A criança ainda não sabe o comportamento das coisas. E pode inventar. Pode botar aflição nas pedras e assim por diante. As crianças não sabem que pedra não tem aflição ou se os peixes dão flor". Tudo isso é ser Manoel de Barros. 

A compilação desta página abre com o quarto trecho de "Livro Sobre Nada" (1996) com título homônino. Em seguida, "Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho" de "O Guardador das águas" (1989). Na seqüência, a primeira parte do "Livro das Ignorãnças" (1993). Para fechar, o poema que acompanhava a reportagem e, até então, era inédito: "O menino que carregava água na peneira" do livro "Exércicios de Criança" (1999). Os quatro primeiros são facilmente encontrados, sendo que os três primeiros foram lançados pela editora Record enquanto o último foi lançado pela editora Salamandra, todos variando de R$ 18,00 a R$ 25,00.

Marcelo Costa
Editor S&Y


O Livro Sobre Nada 

               Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

O artista é um erro da natureza.  Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra 
— Como um lápis numa península.

Do lugar onde estou já fui embora. 



Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

1
 
 

Gravata de urubu não tem cor.

Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.

Luar em cima de casa exorta cachorro.

Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.

Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.

Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.

No osso da fala dos loucos têm lírios.

3

Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.

Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.

Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.

Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras

lavra um poder mais lúbrico de antros.

Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

7

Uma chuva é íntima

Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;

Se aparecem besouros nas folhagens;

Se as lagartixas se fixam nos espelhos;

Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;

E o escuro se umedeça em nosso corpo.

9

Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a

lesma deixa risquinhos líquidos...

A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as

palavras

Neste coito com letras!

Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
 
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma

escorre. . .

Ela fode a pedra.

Ela precisa desse deserto para viver.

11

Que a palavra parede não seja símbolo

de obstáculos à liberdade

nem de desejos reprimidos

nem de proibições na infância,

etc. (essas coisas que acham os

 reveladores de arcanos mentais)

Não.

Parede que me seduz é de tijolo, adobe
 
preposto ao abdomen de uma casa.

Eu tenho um gosto rasteiro de
 
ir por reentrâncias

baixar em rachaduras de paredes

por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.

Sobre o tijolo ser um lábio cego.

Tal um verme que iluminasse.

12

Seu França não presta pra nada -

Só pra tocar violão.

De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.

Não presta pra nada.

Mesmo que dizer:

 - Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
 
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.

De ser o nada desenvolvido.

E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13

Lugar em que há decadência.

Em que as casas começam a morrer e são habitadas por

morcegos.

Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas

a dentro.

Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a

dentro.
 
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.

Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.

Onde os homens terão a força da indigência.

E as ruínas darão frutos




UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO

1a. Parte

"As coisas que não existem são mais bonitas"

Felisdônio

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

etc.

etc.

etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.

Dar ao pente funções de não pentear. Até que

ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou

uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham

idioma.

III
 

Repetir repetir - até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo.
 

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras.
 

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

 
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas

por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a cor dos

passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos -

O verbo tem que pegar delírio.

VIII
 

Um girassol se apropriou de Deus: foi em

Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso

partir de um torpor animal de lagarto às

3 horas da tarde, no mês de agosto.

Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer

em nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até

o mato sair na voz .

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

XI

Adoecer de nós a Natureza:

- Botar aflição nas pedras

(Como fez Rodin).

XII

Pegar no espaço contigüidades verbais é o

mesmo que pegar mosca no hospício para dar

banho nelas.

Essa é uma prática sem dor.

É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode

modificar os seus gorjeios.

XIII

As coisas não querem mais ser vistas por

pessoas razoáveis:

Elas desejam ser olhadas de azul -

Que nem uma criança que você olha de ave.
 

XIV

Poesia é voar fora da asa.
 
XV

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o

abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de

um primal deixe um termo erudito. Aplique na

aridez intumescências. Encoste um cago ao

sublime. E no solene um pênis sujo.

XVI

Entra um chamejamento de luxúria em mim:

Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda

a espessura de sua boca!

Agora estou varado de entremências.

(Sou pervertido pelas castidades? Santificado

pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

XVII

Em casa de caramujo até o sol encarde.
 

XVIII

As coisas da terra lhe davam gala.

Se batesse um azul no horizonte seu olho

entoasse.

Todos lhe ensinavam para inútil

Aves faziam bosta nos seus cabelos.
 
XIX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa

era a imagem de um vidro mole que fazia uma

volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta

que o rio faz por trás de sua casa se chama

enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.
 

XX

Lembro um menino repetindo as tardes naquele

quintal.

XXI

Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.

Sou um sujeito letrado em dicionários.

Não tenho que 100 palavras.

Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais

ou no Viterbo -

A fim de consertar a minha ignorãça,

mas só acrescenta.

Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:

- Ser ou não ser, eis a questão.

Ou na porta dos cemitérios:

- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.

Ou no verso das folhinhas:

- Conhece-te a ti mesmo.

Ou na boca do povinho:

- Coisa que não acaba no mundo é gente besta

e pau seco.

Etc.

Etc.

Etc.

Maior que o infinito é a encomenda.




Tenho um livro sobre águas e meninos. 

Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. 

A mãe disse que carregar água na peneira 

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para 

mostrar aos irmãos. 

A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água 

O mesmo que criar peixes no bolso. 

O menino era ligado em despropósitos. 

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos 

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que 

do cheio. 

Falava que os vazios são maiores e até infinitos. 

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito 

Porque gostava de carregar água na peneira 

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar 

água na peneira. 

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge 

ou mendigo ao mesmo tempo. 

O menino aprendeu a usar as palavras. 

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. 

E começou a fazer peraltagens. 

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando 

ponto final na frase. 

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. 

O menino fazia prodígios. 

Até fez uma pedra dar flor!