Um Mate
e Dois Freuds
(Uma História
Sobre Ser Paulistano)
por
Eduardo Fernandes
[03/01/2001]
Avenida São João. Quase
quatro da tarde. Horário de verão. Sol, ar seco, a paisagem
saturada. Roupas desconfortáveis. Ainda não almocei. Acabei
de voltar de uma entrevista, em busca de emprego. É bom que eu consiga
logo, pois já não tenho a quem pedir dinheiro emprestado.
Deve haver algum lugar em mim que
não esteja suando. Você já se sentiu um ser grudento
e sujo? É assim que me sinto agora. Devo ter algum motivo mais profundo
para isto. Mas você não é o meu analista.
Aliás, por onde será
que anda meu antigo analista? Será que ainda atende naquela casa
azul, que eu chamava de "casa dos Smurfs?" Ficava na Alameda Lorena. Como
você pode confiar num cara que o atende num lugar destes?
Ele não era um cara ruim, pelo
contrário. Eu pagava R$ 20,00 por mês. E ainda assim atrasava
o pagamento. E ele nem reclamava. Por isso ele ficou com aquela cara de
traído, quando eu disse que estava "me dando alta". Ele disse que
não era o momento. Odeio essa expressão: "não é
o momento".
O fato é que estou vivo e bem.
Quer dizer. Se não estivesse imerso nesta mistura de monóxido
de carbono com raios ultravioleta, que se chama centro velho. Um parêntese:
eu já era um desempregado crônico na época em que eu
fazia análise. Mas não comece a tirar conclusões.
A entrevista de hoje foi em Moema.
Eu moro na zona Oeste. Já deu pra perceber que Moema é longe
de casa. E o que estou fazendo no centro? É que São Paulo
funciona assim: se você olhar no mapa, às vezes um bairro
está muito próximo do outro. Acontece que, pra chegar lá,
não tem ônibus direto. Você tem de ir até o centro
e pegar outro.
[ Da seleção natural
aplicada aos paulistanos ]
Isso faz com que nós, paulistanos,
sejamos bem peculiares. Nossas bundas, por exemplo, são meio quadradas.
Anos e anos de seleção natural, de evolução
genética. Nossas mãos já estão perfeitamente
adaptadas aos canos e barras de ferro nos quais temos de nos segurar, coletivamente,
nos coletivos (faça o favor de entender a piada).
O povo que pega trem todos os dias
é mais robusto. E, se os antropólogos quisessem investigar,
notariam que ele tem outra noção de individualidade. Até
mesmo de espaço e de tempo.
Essa história de que dois corpos
não cabem no mesmo espaço é coisa de gente que mora
no Jardim Europa. É só ir para o Jardim Ângela que
tudo muda de figura. Aqui cabem dois, três corpos, numa mesma falta
de espaço.
Há quem gaste dinheiro para
aprender artes marciais. No trem, todos somos mestres. O treinamento diário
é árduo. Por exemplo, ficar horas com o braço levantado,
apoiado na ponta dos dedos no teto do trem. Tente fazer. A arte do equilíbrio,
da resistência, da concentração. Só para iniciados.
Sem falar dos momentos em que saímos
de um trem lotado. Você tem de se esquivar de trinta, quarenta golpes
ao mesmo tempo. E precisa dar os seus, senão não passa pela
porta. Os mais hábeis e éticos, desviam de mulheres e de
crianças. Acertam somente aqueles que parecem poder se defender.
Se bem que até as crianças já estão espertas,
acostumadas.
De volta ao centro velho. Lembro-me
de um cartão do meu analista. Deve estar em algum lugar por aqui.
Espera. É isto: está escrito que ele também é
consultor vocacional, que também trata de assuntos de emprego. Teria
sido coincidência? Não me lembro de ter falado muito sobre
vocações com ele. Devo ter vocação pra que?
Pra procurar emprego. É uma
boa resposta. "O que você faz da vida?" Procuro emprego. "E isso
paga bem?" Well, eu tenho uns R$ 3,00 na carteira agora. "Precisa de qualificação
pra procurar emprego?" Não sei. Mas eu tenho. Leio bastante, sou
aquilo que alguns chamam de pessoa culta. "Já procurou um emprego
de pessoa culta?" Por exemplo? "..." Hein? "..." Já entendi.
R$ 3,00. Preciso de R$ 1,15 para a
condução. Agora é decidir o que faço com o
resto. Investir na bolsa de valores? O calor-monóxido-de-carbono-ultravioleta
me dá uma idéia: tomar mate com leite. Todos de acordo? Vamos
ao Rei do Mate.
Entro no local. Eu já deveria
ser conhecido aqui. Talvez até seja. Mas nunca converso com o pessoal
que me atende. Limito-me a ser educado. E, às vezes, eles são
bem cordiais comigo. Despejam o resto do mate que ficou no liquidificador
no meu copo. Solidariedade humana.
Peço
meu mate. Ele vem rápido. Sento-me e olho para os meus pés.
Só agora me lembrei de que meus calcanhares estão doendo
muito. Os sapatos são novos. Temos de causar boa impressão
nas entrevistas. E alguém definiu que sapatos e roupas sociais causam
boa impressão.
No meu caso, causaram duas rodelas
de sangue, que emparam as meias brancas. Os calcanhares estão em
carne viva. Sou um mártir do desemprego. Feridas como as de Jesus
na cruz. Só que fui crucificado por índios: Jurupis, Jamaris,
dos Nhanbiquaras.
Lembra-se da peça "Dois Perdidos
numa Noite Suja", do Plínio Marcos? Pois bem, eu doaria meu sapato
para aquele fulano da peça agora mesmo. "Você quer meu pisante?
Então leva. E faz favor de enfiar a mão na cara daquele seu
colega de quarto."
Enquanto o mate me refresca, olho
o movimento da Avenida São João. E penso. Em verdade vos
digo que pra procurar emprego é preciso de dois guias: o espiritual
e o guia São Paulo. Eu conheço quase toda a cidade, apenas
procurando emprego.
Já desenvolvi uma espécie
de intuição, que raramente falha. Porque no guia SP tudo
parece claro e viável. Traduzi-lo na realidade é que é
mais difícil. Uma questão epistemológica até
- se me permite um minuto de elitismo. Neste momento, só mesmo o
guia espiritual.
As ruas estreitas e indígenas
do Campo Belo; as também indígenas da Barra Funda (aqui convivendo
com a aristocracia, marqueses, santos e personagens romanos); os burocratas
do Limão e Casa Verde (professores, engenheiros, presidentes); o
nacionalismo de Santana contrastando com os despatriados do Carandiru.
Mais: Pinheiros, com suas mansões
e ruas vazias, cercadas por seguranças nordestinos (que só
podem vigiar e sonhar); a megalomania de Perdizes; a polifonia do Brás;
Penha, Vila Matilde, Artur Alvim etc., que são impenetráveis
pra mim, que só estive lá de passagem. Enfim, melhor parar
por aqui. O mate chega ao fim.
Dou aquela tradicional e mal educada
(dizem) última aspirada, de fim de copo. Tem mais R$ 0,10 de mate
aqui. Eu paguei por isso. Tenho direito. Agora é invadir o boteco
ao lado e fazer a tradicional visita aos limãozinhos.
Explico. É um costume dos donos
de boteco do centro velho colocar uns limãos nos mictórios.
Acho que é pra amenizar o cheiro de urina. Pra mim funciona mais
como um ritual, antes de voltar pra casa.
Os calcanhares ainda doem. Não
sei onde está meu analista. E nem se preciso de um. Às vezes
um mate com leite vale mil Freuds. Certo, certo. Cinco mil Lacans. Não
sei a quantas anda a cotação dos psicanalistas. Acho que
a entrevista não vai dar em nada.
Dane-se. Hoje estou com sorte. O ônibus
vem vindo ali. E talvez dê até pra ir sentado. Já é
alguma coisa.
Eduardo
Fernandes, 25, é sociólogo e mora em SP. Colabora com vários
e-zines e tem uma coluna semanal na revista eletrônica London Burning
( www.londonburning.cjb.net
).
Para
falar com ele: eduf@uol.com.br ou
www.eduf.hpg.com.br |