A MADAME AQUI
As pedrinhas são as notas, a melodia o caminho
por Flávia Ballve Boudou

Todo mundo que me acompanha aqui pelo Scream & Yell sabe que eu não tenho nada a dizer sobre música. Tipo, eu sou capaz ainda hoje de votar no Belle e Sebastian pra "Revelacao do ano", sabe como? e olha que eu só descobri Belle e Sebastian por acaso, por insistencia do Marcelo Costa, que me gravou K7s belíssimas (quem tem K7s do Má se apaixona!). 

O que ouço é antigão mesmo, Marisa Monte, Legião, Tom Jobim, Billie Holiday… Não é por falta de gosto, de vontade ou de ousadia, é por falta de tempo pra sair pesquisando, aprendendo, descobrindo música - coisa que faço habitualmente com cinema e livros. 

O que quero dizer é que sei que não tenho "autoridade" nenhuma pra estar falando de música aqui no S&Y, vocês todos são muito mais qualificados que eu pra falar dos lançamentos e novidades - só que eu queria dar minha contribuicãozinha e falar um pouco das diversas emoções que certas músicas me fazem viver. 

Essa idéia veio quando hoje de manhã, no metrô, vindo pro trabalho, eu ouvi uns acordes de uma música e fui transportada não para a prôxima estação, mas para uma outra época da minha vida. Era um músico desses de metrô, que nos fornecem acordes em troca de uns centavos; geralmente eles enchem o saco, principalmente porque aqui na França eles parecem só conhecer duas músicas: aquela do "o Silvio Santos, la', lá rá lá lá rá lá, lá lá lá lá" etc e, pasmem, o "Tico-tico no Fubá". A exceção é uma cantora numa estação movimentada que é tão boa que todo mundo pára pra ficar escutando, mas pára mesmo, tipo 10, 15 minutos (e vocês já viram como parisiense corre o tempo todo?), ela é fera, um vozeirão, uma emoção no canto… 

Enfim, hoje de manhã o tal músico estava tocando "Raindrops keep falling on my head", que é uma música tão gostosinha, me faz lembrar de "Wonder Years" na TV e do filme que vi ontem a noite, "Some like it hot" (que eu acho que em português se chama "Quanto mais quente melhor"?) com Jack Lemmon, Tony Curtis e uma Marylin Monroe balofissima e gostozérrima, ah, só que isso é história pra todo um outro texto. Mas principalmente a música me levou à época da faculdade, quando eu tinha um grupo de amigos que estava sempre junto e que são até hoje os meus melhores amigos, até foram meus padrinhos de casamento - tirando um, com quem eu já fiquei, daí não achei de bom-tom convidá-lo pra padrinho... 

Bom, foi justamente esse um que me pediu um dia (mas isso muito antes de ficarmos, aliás a ficada foi totalmente inusitada, depois de uma garrafa de vinho e de um fondue roxo, nada a ver) para que eu gravasse umas fitas K7 pra ele, porque ele gostava das músicas que eu ouvia (bons tempos, em que eu era referência de alguma coisa!). 

Bom, (hoje estou tagarela), gravei o primeiro lado da primeira fita, que começava justamente com "Raindrops keep falling on my head". Gravei o lado A todo e copiei-o pro lado B da mesma fita, igualzinho. Dai gravei uma segunda fita exatamente igual à primeira - coisa de espírito de porco mesmo, eu lembro que ria sozinha imaginando ele balançandinho a cabeça no carro, todo feliz com o lado A, daí a fita acabaria e ele colocaria o lado B e seria de novo o "tlin tlin tlon dum, rââindróps keep faaalling on my heeeead", ele ficaria horas tentando ajeitar o som do carro, rebobinando e avançando a fita (alguém lembra como esses rádios toca-fitas tijolão comiam as fitas K7?) e desistiria, colocando a segunda fita, que começaria de novo com o tlin tlin tlon dum… De fato foi o que aconteceu, e isso não tem importância alguma, fora o fato de termos rido à beça sobre isso e dessa gracinha ter me proporcionado, escutando os acordes hoje no metrô, uma manhã muito mais gostosa nessa primavera parisiense. 

E senão, ainda sobre os músicos de metrô : um deles me fez, há um ano, escolher meu emprego. Eu tinha recebido uma proposta, para um cargo comercial numa empresa de seminários para altos executivos. Só que vender, convencer, insistir, não tem nada a ver comigo - minha filosofia é "se virem e não me encham o saco", sou liberal demais desde que não me atrapalhem. Mas a grana era boa, eu estava procurando emprego já havia 4 meses e eu era recém-chegada na França, não me sentia muito no direito de escolher. Só que no fundo eu sabia que aquilo não era pra mim. 

Daí, logo depois de ter recebido a proposta por celular, entrei no metrô, confusa; um músico estava tocando "My Way". Essa música é uma das mais importantes e emocionantes pra mim, choro sempre que ouço, assim como choro a cada vez que vejo "Sociedade dos Poetas Mortos" (mas aí o caso já é mais sério). É que meu pai já faleceu, há 2 anos, depois de uma cirurgia boba que não acabou bem; e antes de ele morrer, antes mesmo de saber que tinha que tirar esses nódulos na tiróide, meses antes mesmo, ele passou a cantar "My Way" o tempo todo, a procurar a letra na internet, a ouvir - encasquetou mesmo com a música do Sinatra, que também tinha olhos azuis como os do papai. E não sei se vocês conhecem a música, mas ela diz assim : 

And now the end is near
And so I face the final curtain
My friends, I'll say it clear
I'll state my case of which I'm certain : 
I lived a life that's full 
I travelled each and every highway 
But more, much more than this 
I did it my way… 

Essa música virou, pra mim, lema de vida, lembrança alegre e sofrida ao mesmo tempo, conselho do meu pai quando eu não posso conversar com ele e preciso tanto da sua ajuda. E foi isso que eu vi ali, tão confusa naquele metrô : Flávia, não aceite esse emprego, não faça coisas que você não quer, tenha coragem de fazer "da sua maneira", pra poder dizer também, como teu pai, no final da vida, "I did it my way". E foi o que eu fiz. Liguei de volta na mesma hora (depois de dar uma grana boa pro músico), expliquei que aquele emprego simplesmente não era eu. No dia seguinte, recebi uma proposta para trabalhar como Gerente de Comunicação de uma nova marca do Club Med, onde estou até agora (a empresa anda capenga mas isso já é outra história). O engraçado é que, há duas semanas, escutei a música por acaso todos os dias - no metrô, alguém que cantarolava ao meu lado, uma espera ao telefone… pelo jeito meu pai andava tentando falar comigo!… 

Eu me sinto premiada pela vida, por poder escutar uma música e me sentir mais próxima do meu pai. Especial, por ter a sensibilidade de ir mais fundo em algo que eu goste. E música serve pra isso, não? 

(E, puxa, nem falei do meu ritual anual com "If tomorrow never comes", da importância da trilha sonora do Les Misérables na minha vida, do que aconteceu comigo com a música "1 de julho" cantada pela Cassia Eller ou com as lágrimas que vi rolando em "Rain Song" do Led Zeppelin…)

Flávia Ballvé-B., 26 anos, pode ser contactada em flaballve@imagelink.com.br e sempre sonhou, bem breguinha, que um dia atenderia o telefone e ouviria "I just called to say I love you"… Contato: flaballve@imagelink.com.br


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