"Aystelum", Ed Motta
por Jonas Lopes
Yer Blues
15/07/2005

O escritor inglês Graham Greene costumava dividir suas dezenas de romances em duas categorias: os sérios e os divertidos. É provável que não haja intenção, mas na carreira de Ed Motta parece também haver essa divisão. Alguns de seus discos são abertamente pop, como Segundas Intenções do Manual Prático e Poptical. Outros, como Entre e Ouça, Dwitza e este novo Aystelum (Trama), atentam para outras possibilidades, flertam com ritmos diversos e buscam na experimentação uma solução original para sua arte.

Sem menosprezar seus outros discos, claro. Os trabalhos "comerciais" de Ed, ainda que convencionais, são muito mais sofisticados que praticamente todo o pop nacional atual. Mas seus discos sérios são o fino. Dwitza já era um dos melhores trabalhos da história recente da música brasileira. Aystelum é tão bom quanto. Ainda mais radical. Soa pessoal, cada canção parece pensada com calma individualmente para formar um todo preciso e exato. Quase dá para sentir o coração de Ed, tentando fazer o disco de sua vida.

Classificação? Difícil. É um disco edmottiano, seja lá o que isso queira dizer. Tudo e nada, talvez. Poucos no Brasil conhecem tanto de música quanto ele, e esse conhecimento enciclopédico irrompe em todo momento. Acho que já não resta dúvidas que Ed seja um instrumentista completo, arranjador brilhante e compositor expansivo. Na sua música os limites são incertos, turvos. Um ritmo sempre puxa outro. Em Aystelum há ecos de samba (Alcione canta uma faixa), musicais da Broadway, funk, o velho soul que o acompanha há anos, pop setentista, bossa, jazz. Este passado é resgatado sem soar pré-histórico ou reverente em excesso.

O jazz é um elemento mais importante. O estilo já aparecia em Dwtiza, discreto em meio às pesquisas da boa música brasileira, e agora ganha mais espaço, em suas várias vertentes. De funk-jazz até o pop-jazz herdado dos ídolos do Steely Dan, passando pelo free, o gênero mais complicado e radical do jazz. Com uma vantagem em relação aos jazzistas gringos: o toque brasileiro. Parece óbvio e irrelevante, mas, fã de gênios como Moacir Santos, João Donato e Hermeto Pascoal, Ed consegue introduzir suíngue à dureza do jazz.

O catalisador e destaque desse lado jazzy do disco é o saxofonista Andrés Perez. Perez é um instrumentista sensacional, e seu sax tenor reverencia mestres do instrumento, como Joe Henderson, Pharoah Sanders e Wayne Shorter. Já seu equilíbrio entre técnica e energia faz lembrar outro talento, Victor Assis Brasil, lendário saxofonista brasileiro morto em 1981 – apesar de Victor tocar sax alto, não tenor. Essa soma do ecletismo de Ed com o instinto de Perez dá a impressão de estarmos ouvindo um John Coltrane Quartet em versão banda de baile ou um Stevie Wonder depois de uma temporada no Village Vanguard.

Awunism, que abre Aystelum, é um free jazz que começa com o trompete assinalando a melodia até abrir espaço para o solo agressivo de Perez, na melhor tradição de Coltrane e Ayler. Na faixa-título o silêncio é muito bem aproveitado. Há espaços, o órgão lá, trompete cá, a bateria incessante ao fundo. Tudo pára e Perez entra. Todos então se juntam e depois abandonam a melodia aos poucos. O final é pacífico, delicado.

Balendoah é o momento supremo do disco. Ed reuniu 14 músicos – entre eles dois baixistas e dois bateristas – para compor essa peça sinuosa que lembra os exercícios para big band de Charles Mingus e Andrew Hill. Um avant-garde com vocalizações esquisitas, belos solos (um de sax, outro de RMI, o primeiro piano eletrônico inventado) e compassos poucos usuais.

As faixas mais convencionais também vão muito bem, obrigado. A vertente pop de Ed é flexível e, como Poptical já havia demonstrado, requintada e digna de figurar na estante de grandes trabalhos pop da música brasileira, como Quem é Quem (João Donato), Nós (Johnny Alf), Garra (Marcos Valle) e Matita Perê (Tom Jobim). Mente quem disser que não sente vontade de dançar ao ouvir a suingada Patidid. E a balada A Charada, parceria com Ronaldo Bastos, é ideal para as rádios.

O segredo é subverter a fórmula, entortar o óbvio. Por exemplo: a rigor, Pharmacias e Samba Azul são sambas (ambas com letras de Nei Lopes). Mas não será tão fácil para o ouvinte descobrir isso. Pharmacias, baseada nos teclados vintage adorados por Ed, é surpreendente. Quando parece que não há o que se fazer com a melodia, o andamento muda e outra vez o sax de Andrés Perez sola. Já Samba Azul é etérea, atmosférica, e traz um belo dueto de Alcione e Ed. É Muita Gig, Véi é uma atualização do jazz-funk do João Donato de A Bad Donato e do Herbie Hancock dos anos setenta.

Aystelum possui ainda outra carta na manga. É o musical 7, o primeiro composto por Ed Motta, com letras de Cláudio Botelho e aqui dividido em um medley de três partes: Abertura, Na Rua e Canção em Torno Dele.

O que entristece é que é muito provável que Aystelum seja uma obra para poucos. Não é um álbum fácil, e isso é outro ponto positivo: cada acorde revela uma surpresa, um detalhe que passara despercebido nas outras audições. Uma daquelas pérolas que depois de trinta anos são descobertas por japoneses e ingleses e vendidas a preços exorbitantes. Sorte dos poucos que deixarem de lado o preconceito e aproveitarem esse grande disco.

Download
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Site Oficial de Ed Motta