Entrevista - Radiola Santa Rosa

por André Luiz Azenha
Fotos: Marcelo Justo/Divulgação
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25/11/2005

"Podemos dizer que nessa era, nada mais pode ser inventado, tudo já existe. O que é anunciado como novidade, nada mais é do que a descoberta de algo já feito. A partir disso (...) a arte passa a ser somente foco e acúmulo de influências; (...) estamos completamente livres para criar em cima do que já foi feito".

Essas palavras estão na página inicial do site do pessoal do Radiola Santa Rosa, dupla de hip hop do Guarujá formada pelo rapper Caio "Dubfones", de 24 anos, e o DJ Beto, de 22, e sintetiza os tempos atuais, em que dificilmente aparecem propostas musicais inovadoras. Mas para quem acredita que as novidades sonoras são misturas do que já foi feito, os caras fazem um som singular dentro desse universo, e montam um conceito tanto musical, ideológico, como também de palco, que mistura o próprio hip hop, tropicália, cinema e samplers de vinis de R$ 1.

Amigos desde a adolescência, ambos já tocaram em bandas "com instrumentos" e em 2000 resolveram formar a parceria. Através de um amigo da Unaerp de Guarujá; conseguiram o estúdio para colocar as idéias em prática, mas chegaram a perder todo o material em uma pane de computador. Com persistência, passaram a testar as batidas e registrar as letras em um PC da mãe de Beto e que resultaram no primeiro álbum, Disqueria, cujo nome é uma homenagem ao sebo em Santos onde compraram os vinis de R$ 1.

O disco de estréia conta com 15 músicas, todas interligadas em um conceito onde as personagens são os próprios samplers que podem aparecer no início de uma faixa como no meio de outra mais à frente. O hip hop forjado pela dupla foge dos estereótipos que mandam ver nos "manos" e "minas" como o rapper Xis e dos que fazem o discurso social como os Racionais MC's.

Ambos seguiram a cartilha punk do faça você mesmo, aprendendo a fazer samplers, scratchs, batidas e escrever as letras como também a produção do seu disco de estréia. "Eu costumo dizer que esse nosso trabalho é punk, apesar da sonoridade não ser desse estilo",afirma Caio.

Grande paixão do vocal, o cinema aparece nas músicas com citações de filmes como Dançando No Escuro (de Lars Von Trier) e Muito Além do Jardim (de Hal Ashbuy e com Peter Selles). "Vejo muito cinema e fiquei conhecendo o Dogma 95 (manifesto cinematográfico criado pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Winterberg, que tratava de filmagens apenas com câmera no ombro, temas inaceitáveis para a sociedade e ausência de luz artificial e trilha sonora , que gerou filmes como Festa de Família, Os Idiotas e O Rei Está Vivo). E o que achei interessante é que eram filmes maravilhosos feitos com pouquíssimos recursos", conta.

Já o Tropicalismo aparece na mistura de gêneros e influências, vanguarda com música brega, buscando uma alternativa ao hip hop conservador. "A Tropicália misturou a Jovem Guarda com a música vinda de fora e quebrou barreiras. Aí falamos assim: já que todo mundo faz sampler de música negra, vamos samplear música de branco", explica. E se o disco foi feito a partir dos discos de R$ 1, ao vivo o conceito também não escapa. "já que fizemos com vinis baratíssimos, só usamos roupas de brechó ao vivo", lembra.

Um dos destaques do trabalho é a faixa de abertura Zoro; uma homenagem a um dos primeiros grafiteiros de NY e ao primeiro filme sobre esse gênero musical: Wild Style. E serve de carta de apresentação. ("Rimas Old School/ Meu rap é freestyle/ Raiz original/ Razão original/ Com bases de 1 real/ Longa vida aos sebos/ Disqueria é o canal"). Espacial é um bacana mix de dub, música latina, MPB e funk que manda um recado ao imperialismo americano com citações de Jack Kerouvack, Freud, Tropicália, Jesus, Budha, Allah e Jah. E ainda há outra homenagem, dessa vez a todos os DJs, em Essa Não Tem Rima. O som, às vezes, lembra Beastie Boys, mas com cara de música brasileira.

Os dois correm atrás para o trabalho acontecer e já despertaram a atenção de alguns veículos de comunicação como a revista Bizz, o caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo e o Jornal da Tarde. O CD está saindo pela Marine Music, com distribuição da Tratore e pode ser encontrado em algumas lojas, no sebo Disqueria em Santos e está a venda no site www.leva.com.br (onde pode ser feito o download gratuito de cinco faixas). No site deles podem ser ouvidos trechos das músicas Zoro e Hipnose, baixar os remixes das mesmas e comprar o disco. O Radiola surge como uma grata surpresa no mundo hip hop, de maneira independente e com talento e vontade para dar certo. Confira a entrevista na íntegra com a dupla:

Como foi o início do Radiola Santa Rosa?
Caio - A gente começou em 2000. Não tínhamos esse nome ainda. Começamos a produzirmos juntos depois de tocar com outras pessoas, com instrumentos mesmo. Aí tivemos uma fase que começamos a criar batidas, eu passei a fazer letras, registrar pensamentos e em 2003 decidimos registrar o material, que já era grande. E passamos a trabalhar em um estúdio da Unaerp, escondidos dos professores. Mas no meio do processo, deu um problema no computador e perdemos tudo. Mas após essa perda surgiu o nome Radiola Santa Rosa em 2004, para gravar um novo material, como um marco novo na nossa vida.

De onde vieram as influências e as idéias para misturar hip hop e outros elementos?
Beto - Veio aparecendo, já que todas as músicas que fazíamos vinham nesse estilo, com vinil... As influências vêm desde as primeiras bandas que escutamos como Beastie Boys.

Caio - Na verdade o hip hop pra gente desde o começo não é algo fechado. Se você pegar o princípio do hip hop, não é algo focado somente na música negra. Não é necessário samplear somente James Brown e música negra. Podemos samplear qualquer tipo de música. E eu gosto desse estilo desde os 15 anos. Beast Boys é uma banda que eu gosto há muitos anos.

No Brasil?
Caio - Do hip hop brasileiro não tenho influência, mas admiro muito os Racionais...

Beto - Rappin Hood também...

E como o movimento Dogma 95 entrou no trabalho da dupla?
Caio - Então, depois que o nosso trabalho desapareceu da faculdade, e até hoje não sabemos o que aconteceu, ficamos desesperados por que não tínhamos mais grana para gravar. Para você ter uma idéia, 50% do disco foi feito no computador da minha mãe. Eu tinha a minha pastinha lá onde guardava as batidas. Eu e o Beto ligávamos o toca-discos direto no PC e fazíamos as colagens. E ao mesmo tempo, vejo muito cinema, e fiquei conhecendo o Dogma 95. Assisti o filme do Lars Von Trier com a Björk, o Dançando no Escuro, e cheguei ao resto do trabalho dele e do Thomas Winterberg. E o que achei interessante é que eram filmes maravilhosos feitos com pouquíssimos recursos. Não seguiam gêneros e saiam do habitual. Isso me deu um estalo e pensei: Vamos fazer algo assim! E o engraçado é que nunca tivemos dinheiro para comprar discos e lá no Disqueria (sebo em Santos) adquirimos os vinis por R$ 1. Passamos a brincar com o mais barato possível, software do mais barato, enfim...

Além disso, tem o tropicalismo também...
Caio - Eu gosto de todo o tipo de manifestação artística e cultural... E a própria MPB... acho que é minha maior influência, acredito que seja mais até do que o hip hop. Tanto que Caetano Veloso é meu maior ídolo, os discos dele dos anos 70. Tem também os Mutantes e os Novos Baianos. A tropicália misturou a Jovem Guarda com a música vinda de fora e quebrou barreiras. Aí falamos assim: já que todo mundo faz sampler de música negra, vamos samplear música de branco.

Beto - Vamos pegar a Tropicália que todo mundo houve falar, mas que poucos escutam...

Como ocorreu o processo de gravação?
Caio - Tínhamos um amigo, o Rafael, que queria estudar Engenharia de Som, mas não tinha estudado ainda. Eu costumo dizer que esse nosso disco é punk, apesar da sonoridade não ser punk, ele foi gravado no mesmo molde dos discos de punk dos anos 70, com baixíssimo recurso e pouco se importando com a qualidade que o engenheiro de som poderia ter. Mas esse cara tinha vontade, um computador um pouco melhorzinho que o meu e a mãe dele tinha uma casa em Guarujá, pois ele é de São Paulo, e ficamos morando lá quase uns três meses. O trabalho foi intenso na gravação...

Beto - Teríamos que fazer com alguém que estivesse a fim.

Caio - Outro lance que me chamou a atenção na mesma época que passei a gostar do Dogma 95 foi o pessoal do Folk Lo Fi. Uma galera que faz folk music e grava com equipamentos bizarros. Curto muito Devendra Banhart. O primeiro trabalho dele foi gravado em uma secretária eletrônica. Essas coisas me chamaram muito a atenção, mesmo por que o hip hop caminha para um lado de ostentação que não tem muito a ver com a gente. Mas isso não quer dizer também que não queremos viver de música, crescer na música e ser bem sucedidos. Só estamos fora desse lance de super astro, correntão de ouro, gírias para se enquadrar no padrão. Eu não preciso usar o boné de lado, falar mano e te olhar torto para fazer hip hop.

Qual a gravadora?
Caio - A Marine Music, é a mesma gravadora da Perla. Lembra dela? Eles têm dado uma força legal, ajudado a gente. Ele está sendo distribuído pela Tratore. E dá para comprar no nosso site.

E o trabalho de vocês tem todo um conceito. De onde vem a inspiração para as letras?
Beto - O conceito do disco é misturar todo o tipo de som com menor recurso possível. Colocando a idéia na frente, com influências de Marvin Gaye a Roberto Carlos. Ele não tem intervalos, existem citações de filmes, samplers de outras músicas.

Caio - Pois é... outra influência do cinema são os próprios samplers no disco. Na época do tropicalismo, passei a gostar do Glauber Rocha, que fez filmes não tão perfeitos, mas muito bons enquanto idéias. E nesse sentido, os samplers do disco são personagens, ele aparece no início do álbum e pode aparecer no final, de repente.

Quem escreve as letras?
Caio - Sou eu...

Você se considera vocal?
Caio - Ah cara... eu me considero um bom sujeito (risos). Essa frase é do Caetano. As letras surgem muito da minha forma de viver, do contato com a natureza, do drama urbano, do que as pessoas procuram para suas vidas. Hoje as pessoas sofrem até menos preconceito do que antigamente, mas acredito que o homem nunca foi tão fraco como atualmente... As pessoas se apegam com coisas muito pequenas como ir ao shopping, amizades por causa de dinheiro... isso me desperta muito a vontade de escrever...

E críticas sociais e políticas?
Caio - Não muito... Eu acredito que para alguém fazer crítica social ele deve estudar muito, e eu prefiro ver filmes ao estudar (risos). Eu prefiro falar sobre autoconhecimento. Como posso ser um melhor ser humano, esse tipo de coisa...

No site, tem a colocação de que hoje dificilmente se criará algo novo musicalmente. Não há mesmo como surgir uma proposta musical inovadora?
Caio - Na minha opinião não. Eu baseio a modernidade pelos filmes de ficção científica. Que filme desse gênero que você vê que é realmente novo?

Beto - Mudar totalmente o que tem aí é difícil. Pode dar uma cara nova, mas mudar realmente...

Caio - Misturar estilos musicais não é mais algo novo. Nos anos 90 surgiram propostas assim, como o Nação Zumbi, que misturava Maracatu com rock. As pessoas buscam no passado algo esquecido e fazem de novo. Os Strokes são um exemplo: são os Stooges reciclados. Hoje as pessoas falam com a maior naturalidade de Television. Por exemplo, falam de Los Hermanos, que são uma baita banda, mas o Tom Zé já fazia algo parecido com o que eles fazem, o Clube da Esquina...

Como estão os shows?
Caio - Nossos dois únicos shows foram em Santos. Nosso primeiro foi com o Mamelo Sound System e iremos tocar em um festival com Black Alien, De Leve, B Negão e muitos outros... E para completar, a gente levou o conceito do disco para o palco, já que fizemos com vinis de R$ 1, só usamos roupas de brechó ao vivo. Queremos crescer como artistas, não como enganadores.

E para encerrar, um recado para o pessoal...
Caio - Que as pessoas continuem gostando de música. Vamos livrar nossos preconceitos diários.

Beto - Fazer as coisas por amor que acabam rolando...

Caio - Que as pessoas invistam mais em si mesmas. Se nos anos 70 houve a luta do movimento flower power, os panteras negras... acho que hoje estamos na época de lutar para ser feliz.

Leia Também:
"Dançando no Escuro", por Carmela Toninelo

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Site Oficial de Radiola Santa Rosa