'Cripple Crow', de Devendra Banhart
por Marcelo Costa
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23/01/2006

A música pop anda em círculos nos últimos anos. A moda pós-moderna é copiar indiscriminadamente, tudo e todos. Nesse balaio de gato, EUA e Grã-Bretanha perderam até seus status de capitais da cultura visto que bandas nascidas na terra de Bush parecem mais britânicas que a Rainha Elisabeth, e vice-versa. Não importa de onde você é, mas sim com quem você se parece. Antigamente Londres brigava com a capital norte-americana da vez para ver quem ditava as regras no mundo pop. De uns três anos pra cá, com grande influência da Internet, a aldeia global se transformou num único território sem dono.

Foi nesse cenário pouco criativo que o folk singer Devendra Banhart ganhou status de lenda, arrastando sua voz banhada em charme sobre bases livres de violão que beiravam o improviso, mas transformavam um punhado de palavras em grandes canções. Ao contrário dos moleques de seu país, Devendra não chama a atenção por usar terninhos, fincar os tênis nos anos 80 ou aparentar um estilo nonsense que mais lembra mimo excessivo dos avós. Devendra é exatamente a via contrária. Usa roupas coloridas, chinelos e parece mais um hippie perdido entre as estrelas cantando sobre coisas que nem ele mesmo deve saber, mas que soam tremendamente encantadoras e conquistam o ouvinte por sua despretensão, beleza e atemporalidade.

A atemporalidade do som de Banhart, no entanto, surge embalada em um som simplificado e mágico, para o qual muitos tentam inventar rótulos (freak-folk, alt-folk, folk-pop, free-folk), e que deve ter dado um nó na cabeça dos críticos com seu quarto álbum, Cripple Crow, lançado no mercado estrangeiro no segundo semestre de 2005, e ainda inédito no Brasil. Cripple Crow é quase uma antitese dos três trabalhos anteriores de Devendra, principalmente a dobradinha Niño Rojo/Rejoicing In the Hands, álbuns gêmeos separados no berço, compostos nas mesmas sessões de estúdio, e que deram status de novo "Bob Dylan" para o cara. Se o folk e a solidão via 'one-man-band' ditava as regras antigamente, Cripple Crow passeia por diversos estilos e ainda traz Devendra acompanhado por uma banda. O resultado é um álbum alegre e encantador, que homenageia os Beatles, diz não à guerra e distribui vocais latinos para desespero dos norte-americanos puristas.

Em mais de 75 minutos de música, distribuídos em 22 músicas, Devendra consegue a proeza de não soar repetitivo, cansativo e exagerado. Abre o disco com uma folk song que lembra os trabalhos anteriores, Now That I Know, mas logo incorpora um violoncelo que leva a melodia para o território estranho e belo da música indiana. Na seqüência, Santa Maria de Feira, uma bossa nova alegrinha com violino e flauta que relembra a passagem do cantor pela cidade portuguesa de mesmo nome, e traz rimas como "Comendo perra / em Santa Maria de La Feira / Que placer ir / La gente buena / Solo gozan nunca hay pena / Pra que sufrir". Heard Somebody Say é a primeira que traz grandes novidades: baladinha beatle White Álbum que começa com piano, incorpora bateria, traz vocalizações e define com sabedoria a opinião de toda uma geração sobre guerras: "It's simple: we don't wanna kill".

Long Haired Child mistura fuzz com wah-wahs em uma música de banda mesmo, roqueira, como bons solos de guitarra e um destaque para a percussão na parte final. Quedate Luna ampara-se na música flamenca, Lazy Butterfly esbarra na psicodelia através do uso do sitar, Some People Ride The Wave lembra música norte-americana dos anos 40, The Beatles é um improviso delicioso que começa rendendo homenagens para Paul McCartney e Ringo Starr ("are the only Beatles in the word"), recebe influências espanholas e ainda cita Marc Bolan e Donovan no meio. Dragonflys é curtinha, lembra o Devendra "das antigas", destaca a voz feminina de Matteah Baim e uma letra chapada: "I don't owe me any money / You don't owe me a thing / When we drink beer / Dragonflies appear". Só para você ter uma idéia, caro leitor, este é o meio do disco. Daqui para o final, Devendra ainda crava outras 11 ótimas canções mantendo o tom desafiador da primeira metade, cujo cerne é colocar a musicalidade mundial na palma da mão, como se o planeta Terra fosse uma bolinha de gude em que o brilho alterna dependendo de onde se fixe o olhar.

Após ser apontado como a figurinha da vez, Devendra assume uma posição corajosa e renega todos os adjetivos e definições que poderiam limita-lo, juntando seus amigos (que ele carinhosamente chama de "família") para gravar um disco que deve ser ouvido como uma trilha sonora do cancioneiro moderno, cujo ecletismo convida a contemplação enquanto despe uma musicalidade impar que busca inspiração no jazz, na bossa nova, no blues, na música indiana, flamenca, psicodélica, rock, e, claro, no folk, para mostrar que é possível fazer um disco inspirado aos 24 anos sem precisar estar inserido nas modinhas do momento que ditam as paradas musicais mundo afora. O resultado desse ato de coragem chamado Cripple Crow - ter personalidade pode a cruz de um artista em um mundo sustentado por diluidores/copiadores - é um repertório atemporal e radiante que mostra a força de um músico que não teme ampliar seus horizontes no momento em que seguidores o chamam de gênio pelo que fazia anteriormente. Um disco inspirado que corre o sério risco de viciar o ouvinte. E de se tornar clássico.

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Site Oficial de Devendra Banhart