Entrevista com Dave Douglas
por Jonas Lopes
Gymnopedies
22/10/2006


Aqueles que acusam o jazz de viver do passado, de estar acomodado e de não apresentar nada de novo há décadas não devem conhecer o trabalho de Dave Douglas. O trompetista e compositor norte-americano de 43 anos é dono de uma obra eclética e prolífica, muito prolífica. Em treze anos de carreira discográfica solo são mais de vinte discos, quase dois por ano. E não há limites para a sua criatividade: gêneros, rótulos, formações – tudo é motivo para Douglas colocar sua mente exploradora em ação.

O "método" do músico é simples: cada uma das suas (muitas) bandas possui uma formação e uma sonoridade específicas. O seu sexteto, por exemplo, está mais próximo do jazz tradicional e dedica-se a homenagens a gênios do passado (Booker Little em In Our Lifetime, Wayne Shorter em Stargazer, Mary Lou Williams em Soul On Soul). A Charms Of The Night Sky Band (com trompete, acordeão, violino e baixo) lembra tango em vários momentos. O Tiny Bell Trio (trompete, guitarra, bateria) e o String Group possuem influências do Leste Europeu e de música tradicional judaica. Freak In (2003) é marcado pelo forte emprego da eletrônica, puro jazz para o século 21. Witness, de 2000, é politizado: tem até Tom Waits fazendo discurso em uma faixa de 23 minutos.

No ano passado foram lançados dois belos álbuns, Mountain Passages e Keystone, bem distintos entre si. O primeiro traz uma instrumentação curiosa (trompete, clarinete, tuba, cello, trombone e bateria) e explora a música de câmara. Já Keystone, gravado em homenagem ao cineasta "Fatty" Arbukle, flerta com o funk e traz novos elementos de eletrônica, até com participação de um DJ. Ufa.

A fábrica de álbuns Dave Douglas urdiu mais um produto. Meaning and Mystery, lançado em maio, é o segundo trabalho a sair pela própria gravadora de Douglas, a Greenleaf Music, e é o terceiro gravado pelo Dave Douglas Quintet (os outros são The Infinite, de 2002, e Strange Liberation, de 2004). A novidade é uma mudança na formação: o saxofonista Chris Potter (também do quinteto de Dave Holland) deixou a banda e foi substituído por Donny McCaslin. Segundo Douglas, McCaslin tem um estilo menos "cheio" que Potter, mas "mais flexível e completo". O resto do quinteto é composto por Uri Caine (piano e Fender Rhodes), James Genus (baixo) e Clarence Penn (bateria).

O quinteto é uma das bandas jazzistas e "convencionais" de Douglas. O som do grupo costuma ser comparado ao segundo quinteto de Miles Davis, a fantástica banda com Herbie Hancock, Wayne Shorter, Ron Carter e Tony Williams. "As pessoas exageram. Cem por cento das críticas citam o quinteto do Miles. Ele é o meu maior herói e uma influência constante, mas fazemos o nosso próprio som", afirma ele. "Uma das coisas mais fascinantes em Miles é que há pessoas que amam uma ou duas fases dele e detestam todas as outras. Ele devia estar fazendo alguma coisa certa". Douglas confessa que uma das inspirações do novo álbum é o inventivo quarteto atual de Shorter.

Meaning and Mystery, de fato, remete bastante ao som de alguns discos de Miles Davjs da segunda metade da década de 60, como Filles de Kilimanjaro e Miles In The Sky, especialmente pelo Rhodes de Uri Caine (o novo Hancock?) e pelo estilo polirrítmico de Clarence Penn, herdeiro de Tony Williams. As sete músicas do álbum foram compostas pelo próprio Douglas, um fato constante em sua carreira. Foram relativamente poucas as vezes que ele recorreu a regravações. "As músicas ficam no meu ouvido a maior parte do tempo. Se estou trabalhando em algo novo, carrego na minha cabeça por um longo tempo antes de sentar e escrever. Só escrevo quando aquilo já está pedindo para ser botado para fora".

Douglas, revelado no sensacional quarteto Masada de John Zorn, é um dos principais artífices do jazz americano contemporâneo, tão criticado por alguns setores da crítica. Provocou polêmica recentemente o livro Is Jazz Dead? Or Has It Moved To a New Adress?, em que o jornalista inglês Stuart Nicholson sustenta a tese de que não se faz mais jazz criativo na América, e que a Europa é, na verdade, o grande pólo renovador do estilo. Dave discorda, e reclama que Nicholson entrevistou a ele e outros músicos sem nem mesmo comentar suas carreiras. "Eu não sei o que ele estava tentando provar. O jazz americano está vivo, e muito. Não param de surgir novos bons nomes", defende o trompetista, que cita, entre outros nomes, Jason Moran, Bill Frisell, Uri Caine e Ken Vandermark.

Dave nega que tenha rusgas com outro trompetista, Wynton Marsalis, conhecido pelo seu conservadorismo e sua visão apocalíptica do jazz contemporâneo. Refuta o rótulo de "anti-Wynton", dado por algumas publicações norte-americanas: "Nós temos opiniões muito diferentes sobre jazz, e essas diferenças são naturais em quaisquer músicos. Eu fiquei triste de ver que o documentário do Ken Burns (que teve participação massiva de Marsalis) trouxe uma visão tão incompleta do jazz, mas respeito as opiniões de Wynton, ainda que não concorde com elas", lamenta.

"A música evolui constantemente", continua. "A eletrônica, por exemplo, é um desafio excitante. Mas muda tão rápido. Nesse momento alguma fronteira está sendo ultrapassada e transformada em alguma outra coisa. Eu acredito que o futuro da música depende dos músicos serem verdadeiros com seus instintos e procurarem genuinamente por significados através da música". Uma forma que o trompetista encontra para manter contato com as novidades é o selo Greenleaf, onde recebe várias gravações de jovens músicos. Ele aproveita ainda o site da gravadora (http://greenleafmusic.com) para se manifestar sobre todo tipo de assunto, de política (é detrator de George W. Bush) a, evidentemente, jazz (um artigo recente comenta a caixa The Cellar Door Sessions, de Miles Davis).

Embora Meaning and Mystery tenha saído há poucos meses, Dave Douglas já articulou outro projeto. Blue Latitudes é uma peça composta por ele em parceria com o combo inglês Birmingham Contemporary Music Group e executada no início de abril em Londres. As músicas são inspiradas pelos livros de aventuras do explorador náutico Captain Cook. Na formação, um trio de jazz (trompete, baixo e percussão) se une a uma orquestra de catorze músicos e um regente. Blue Latitudes é um passo ainda mais ousado na já inventiva carreira de Dave Douglas. Jazz e música clássica caminham lado a lado na peça, e as fronteiras são respeitosamente desrespeitadas o tempo todo. O trio improvisa e carrega consigo a orquestra, promovendo uma espécie de "free-erudito-abstrato" (o show foi transmitido pela BBC e é possível encontrar a gravação na Internet).

"Eu nunca penso em música em termos de gêneros", afirma Douglas. "Vejo vários elementos convergentes no jazz e na música de câmara. Músicos de jazz precisam interagir como um quarteto de cordas. A banda tem que ser entrosada o suficiente para se permitir mudanças e desafios". Dave, que teve formação clássica como músico, diz admirar a obra de compositores modernistas como Igor Stravinsky e Béla Bartók, e no momento estuda as técnicas de contraponto de Bach. "Mas, repito, não consigo separar as influências por gêneros. Assim como admiro Stravinsky, adoro Stevie Wonder, John Coltrane, Björk e João Gilberto". O mestre da bossa nova não é citado à toa: Douglas morou no Brasil por cinco meses em 1983, "algum tempo em Salvador e algum tempo em São Paulo", e é apaixonado pela nossa música. Como músico, participou do Chivas Festival de 2001.

Enquanto excursiona com seu quinteto para divulgar Meaning and Mystery, prepara o lançamento em disco de Blue Latitudes (fora o dueto com o pianista francês Martial Solal, Rue de Seine, lançado no início do ano, e da versão ao vivo de Keystone, gravada na Suécia) e ainda organiza o Festival Of The New Trumpet Music (http://www.fontmusic.org), o incansável Dave Douglas já pensa no futuro: um álbum em homenagem ao trompetista Lester Bowie (do Art Ensemble Of Chicago, morto em 1999) e outro em homenagem a Don Cherry (morto em 1995), nos moldes dos tributos anteriores. E ele não dá sinais de que pretende diminuir o ritmo tão cedo: "O que me interessa na música é progresso e novos sons. Eu sinto um desafio pessoal de fazer cada disco e cada composição diferentes do último. Pretendo continuar crescendo e tenho uma curiosidade insaciável por música. Sigo meu ouvido, minha cabeça e meu coração".



Dave Douglas – Meaning and Mystery (Greenleaf Music)

De todos os muitos grupos de Dave Douglas, o seu quinteto é a que mais se aproxima do “puro” jazz. Não há flerte com eletrônica, música judaica ou do leste europeu, tango, música erudita. A formação é convencional: trompete, sax tenor, piano elétrico, baixo e bateria. Isso quer dizer que se trata de um Douglas menor porque menos aventureiro? Não. É verdade que em Meaning and Mystery Douglas não quebra barreira alguma, como ele o fez em discos como Convergence, Charms Of The Night Sky, Mountain Passages, Freak In ou no seu novo projeto Blue Latitudes.

Em compensação, é talvez o disco em que o trompetista atinge o nível máximo como compositor. Ora, já são mais de vinte trabalhos, e em todos eles juntos deve haver meia dúzia de covers – o grosso é de composições próprias. Tanto treino deixou Dave Douglas com uma acuidade incrível na escritura das melodias. E jazz é complicado, não basta ter muito talento para compor grandes músicas. O ídolo de Douglas, Miles Davis, por exemplo, sempre teve como ponto forte a capacidade de reconstruir composições alheias, mais que de criar canções próprias (e ele teve a sorte de ter em seu maravilhoso segundo quinteto Wayne Shorter, um dos três ou quatro maiores compositores da história do jazz instrumental). Thelonious Monk era considerado por alguns (insanos) um mau pianista, e foi outro gênio da composição.

Meaning and Mystery é, de longe, o disco de Douglas em que as músicas mais se recusam a nos deixar. Elas estão cheias de tessitura, ângulos, reviravoltas, paradas e recomeços, mudanças de andamento. Culture Wars, a segunda música do álbum, é talvez a melhor canção já escrita por ele. O baixo e o trompete dialogam na abertura e logo ganham abrigo sob o tapete do Rhodes de Uri Caine, em um arranjo que soaria plenamente natural em In a Silent Way. Em quase treze minutos Douglas e o saxofonista Donny McCaslin alternam seus solos se aproveitando do conforto oferecido por baixo e teclado. A melodia começa calma até chegar em uma espécie de refrão que homenageia Go, de Wayne Shorter (do disco Schizophrenia, de 1967), depois estoura, volta a calmaria, estoura de novo. McCaslin é uma grata surpresa: o saxofonista anterior do quinteto, Chris Potter, é excelente, porém mais adequado à banda do baixista Dave Holland (que também está de discaço na praça, Critical Mass). O novo membro chegou em boa hora.

E se alguém tiver dúvidas quanto à maturidade de Douglas como compositor, sugiro que, depois de ouvirem o álbum, corram atrás do álbum que ele gravou com Martial Solal, Rue de Seine, lançado antes de Meaning and Mystery. Em duetos simples de piano e trompete, ele adiantou as canções que estariam no disco novo em rendições desnudas. Difícil ouvir as versões de Elk’s Club e da balada Blues To Steve Lacy (gravada com surdina) e não constatar que se trata do maior nome de toda uma geração. E não qualquer geração, mas a de gente como Ken Vandermark, Marilyn Crispell, Ellery Eskelin, John Zorn, Matthew Shipp, Bill Frisell e Vijay Iyer (poderia citar vários outros). O jazz não tinha um grupo de talentos assim há pelo menos trinta anos.

Links
Site de Dave Douglas