Patti Smith - Elegia ao Punk como Modo de Vida
Parte 2

"YOU CAN'T SAY 'FUCK' IN THE AMERICAN RADIO"
 Lema de um manifesto promovido pela cantora após incidente com a mídia e censura

Após uma bem-sucedida turnê pela América e Europa, ao mesmo tempo que em que se prenunciava a eclosão do punk safra-77 numa "incendiada" Londres, o Patti Smith Group retorna ao estúdio em meados de 76. Com produção Jack Douglas, Radio Ethiopia, o segundo álbum da banda, aponta em direção ao rock'n'roll básico, ao mesmo tempo em que contém rupturas radicais com o formato tradicional da canção pop. 

Assim é a faixa-título, uma canção de 10 minutos que expressa o mais radical desvario poético e sonoro do quinteto, cuja fórmula foi apropriada e desenvolvida anos depois pelo Sonic Youth, expoentes da avant guarde nova-iorquina da década seguinte. Já esperando comparações com o bem-sucedido álbum anterior, logo de cara, Patti afirmou que a "culpa" pela sonoridade de Horses se deve única e exclusivamente à ela e seus músicos. Segundo ela, John Cale apenas deu opiniões que eram então rechaçadas pelo grupo.

Apesar disso, o disco contém material apresentando durante a excursão anterior. Ao ponto de duas canções, "Radio Ethiopia" e "Abyssinia" terem sido gravadas ao vivo no auge da aclamação da banda, em agosto de 76. Ambas são uma dedicatória a Rimbaud e, principalmente, ao escultor Constantin Brancusi, outra de suas influências. 

Pouco antes do lançamento do segundo álbum, numa turnê européia já pairava no ar um clima não muito agradável para o Patti Smith Group, muito mais dado a celebrações dionísicas do rock'n'roll do que para a cretinice estéril com a qual se configurava a nova cena. O levante punk londrino começava a chamar atenção e o baterista Jay Dee Daugherty resolveu assistir a um show dos Pistols no Roundhouse em Londres e se surpreendeu com o discurso do frontman dos Pistols. Ao entrar no palco, Johnny Rotten gratuitamente bradou contra o grupo chamando-os de hippies velhos que ficam sacudindo seus pandeirinhos. "Horseshit" (bosta de cavalo), Johnny aludiu ao LP de estréia do quinteto. Assustado com a ovação, o baterista achou que seus quinze minutos de fama já eram coisa do passado. 

Outro incidente da turnê européia se deu em Paris. Patti machucou sua mão direita numa das apresentações, além do desgaste natural de uma excursão internacional ao qual não estavam acostumados. E para piorar a situação, os músicos, inexplicavelmente, ficaram presos em um pequeno camarim enquanto a multidão gritava para que voltassem ao palco, à beira de um tumulto de grandes proporções. A turnê européia mostrou aos músicos uma vida a qual talvez não estivessem preparados, o que levou alguns amigos da antiga a tacharem Patti como uma pessoa oportunista e "mascarada". 

Mas uma coisa era certa: Radio Ethiopia, dedicado à Wayne Kramer (guitarrista do MC5, então preso por porte de maconha), é bem diferente de seu antecessor, ao mesmo tempo mais comercial e mais vanguarda. Horses era um disco mais autoral, enquanto Radio Ethiopia foi um trabalho feito em conjunto. 

Outro fator que contribuiu para a repercussão mediana do álbum foi um incidente ocorrido anteriormente, na ocasião de uma entrevista para a rádio WNEW-FM. O Patti Smith teria um concerto de final de ano transmitido ao vivo pela rádio, que se recusou a fazê-lo em razão de Patti ter proferido a palavra "fuck" um mês antes numa entrevista transmitida ao vivo pela rádio. Vale ressaltar que um incidente semelhante seria o estopim para a "aclamação" nacional dos Sex Pistols na Inglaterra, pouco tempo depois. Só que os ingleses tiveram mais sorte, já que se tornaram "a bola da vez" aos olhos do mercado fonográfico (o começo do punk rock do ponto-de-vista do grande público), enquanto Patti e cia. sofreram certa discriminação, o que a levou a escrever o manifesto "You Can't Say 'Fuck' in Radio Free America", publicado em ! março de 1977 por um jornal norte-americano. 

As apresentações do grupo começavam a se tornar ainda mais caóticas, a frágil figura de Patti nos palcos evocava um certo instinto protetor nas platéias, num misto de admiração e medo. Muito em razão aos temas de algumas letras, que tinham significado um tanto hermético. Uma overdose em progresso era o tema de "Poppies", a mesma canção que também narra uma a história absurda de uma mulher dando à luz a um trator enquanto um artista plástico pintava um quadro. A canção é uma homenagem à atriz-modelo Eddie Sedwick, estrela da trupe de Andy Warhol a quem Patti sempre admirou, encontrada morta com uma "tonelada" de anfetaminas. 

Mas o segundo álbum do grupo trazia material com potencial radiofônico, como "Ask the Angels" e "Pumping (My Heart)" - esta última uma parceria com Allen Lanier (Blue Oyster Cult). Uma canção de Radio Ethiopia, "Pissing In a River", remete à formação religiosa da cantora, algo como uma tentativa de reabilitação. O disco contém várias mensagens dirigidas a Deus, artifício estético que ela nunca mais utilizaria de uma forma tão contundente. Inclusive, uma das canções mais fortes do disco é justamente uma em que Patti sexualmente desafia o Criador. Em "Ain't It Strange", ela o encara de uma forma carnal, fazendo todo um misénsene durante os shows. Em entrevistas da época, ela chegou a dizer que, se Jesus estivesse por perto, ela seria uma groupie a acompanhá-lo por todo o tempo.

Essa canção justamente serve como pano-de-fundo para uma tragédia na vida de Patti. O grupo fazia o número de abertura para o cantor Bob Seger, que não os deixava utilizar todo o seu aparato de luzes. O Patti Smith Group iniciou a apresentação e receberam uma fria recepção por parte da platéia. Silêncio total ao final da primeira canção, o que fez com que os músicos voltassem com o maior gás para o próximo número, "Ain't It Strange". Nesta canção, Patti se confronta com Deus. Um de seus versos, "Come on, God / Make a Move", é o auge do embate, que nos shows ganhava uma proporção um tanto perigosa. 

Patti considerava cada performance como um embate de vida ou morte com o êxtase e achava que sua obrigação era fazer com que a platéia entrasse em transe. Nas apresentações, esse era um número em que Lenny e Patti faziam um pequeno balé, em que a cantora começava a girar freneticamente no verso acima citado. Era uma alegoria corporal em que ela simulava uma fêmea entrando em êxtase após um contato mais "humano" com o criador. 
Tanta histeria não poderia dar em boa coisa. No final de 1976, uma tragédia aconteceu em Tampa (EUA), quando Patti rodopiou e errou ao tentar agarrar o microfone. Algumas pessoas ainda tentaram segurá-la, mas a cantora acabou caindo no foço em frente ao palco, quebrando o pescoço. Esse momento marcou o auge das apresentações caóticas implementadas pelo grupo e, ao mesmo tempo, o início de uma redenção impingida ao quinteto. Durante um ano, a cantora foi forçada a restabelecer seu estado físico, o que, conseqüentemente, impossibilitou que o Patti Smith Group participasse do auge da explosão do punk britânico, em meados de 77. 

Patti caiu do palco enquanto cantava os versos "hand of God, I can feel the finger" e declarou que sentiu como se tivesse sido empurrada. Depois da queda, Patti nunca mais cantaria canções "heréges" como "Gloria" e segurou a onda nas poucas ocasiões em que cantou "Ain't It Strange", com Lenny fazendo o papel da fêmea que gozava. Apesar dos confrontos "artísticos" com Deus, Patti sempre foi muito cristã, o que fazia com que a religiosidade fosse tema recorrente em suas obras. Isso se reflete em seu novo trabalho, algo como uma "ressurreição", onde apresenta uma nova faceta espiritualista. 

EASTER - A RESSURREIÇÃO
Título do terceiro álbum da cantora e uma canção do disco

No período de recuperação (quer dizer, "redescoberta", segunda a cantora), Patti aproveitou para escrever um novo livro de poesias, chamado "Babel". Mas o grupo teve sua primeira baixa, com a saída do tecladista Richard "DNV" Sohl, em decorrência de problemas de saúde. Chegou a pensar se um dia voltaria a se apresentar novamente, mas se rendeu. Contanto, o Patti Smith Group só voltaria aos palcos em 1978, com uma apresentação especial no CBGB's, em comemoração à Páscoa (também o nome de seu novo álbum, Easter). Contando com o tecladista Bruce Brody no lugar de Sohl, o grupo se mostrou mais sofisticado musicalmente e Patti mais interessada no Cristianismo, ainda que com um certo cuidado.
Patti era muito ligada na relação direta entre Deus e humanidade, enquanto que depois do acidente, começa a levar em conta essa relação entre criador e criatura por intermédio de Jesus Cristo. Isso levou-a a reavaliar a figura de Cristo e seu inabalável magnetismo na massa ao longo dos séculos. Antes ela achava que a única forma de se comunicar com Deus seria através de si mesma, razão pela qual ela acredita ter sofrido o acidente. Já recuperada, declarou que a misenscéne que ela promovia quando se machucou era uma tentativa de comunicação cerebral e sexual com Deus. E afirmou que a queda foi a forma que Deus encontrou para dizer que sabia que ela só pararia de bater naquela porta quando ele a abrisse e ela fosse ao chão. 

Daí vem a temática redentora recorrente em Easter. Com a produção de Jimmy Lovine, o disco se referia à celebração da felicidade, algo como um renascimento após uma circunstância trágica. Um sinal de mudança: a capa do disco traz a cantora numa foto que explora sua sempre enrustida feminilidade, a despeito de alguns pêlos nas axilas de Patti saltarem a nossa vista. Apesar da serenidade, a performance de Patti nos palcos continuava selvagem, só que mais canalizada para sua guitarra, instrumento ao qual passou a se dedicar mais.

A maioria das canções do álbum nunca havia sido apresentada ao vivo, o que nunca ocorrera antes. Na faixa-de-abertura, "Till Victory", Patti pede a Deus que não a sacrifique "até que chegue a vitória", porque sabia que sua missão não havia acabado. Mas ao mesmo tempo, deixa transparecer no disco certo desconforto com dogmas religiosos. Em entrevistas, também começava a se mostrar entediada com os rumos do rock'n'roll e com sua própria carreira. 
Esse período coincide com seu primeiro grande sucesso radiofônico, a baladaça "Because The Night", parceria com Bruce Springsteen (que nos anos 90 recebeu uma versão dos 10.000 Maniacs, desprovida da sexualidade encontrada na versão original). Ambos gravavam no mesmo estúdio e aí surgiu a idéia de juntá-los. Inpirada em sua incipiente paixão por Fred, a canção chegou ao Top Ten americano, o que ocasionou um baita aumento nas vendas do disco. É, até então, o trabalho mais acessível do grupo e o eleva a um inédito patamar de popularidade. Patti Smith chegou até a ganhar um Grammy como "Melhor Artista Novo" (sic). 

Em "Ghost Dance" (que posteriormente receberia versão definitiva a cargo de Marianne Faithful, outro ícone setentista sobrevivente até hoje) é quase um cântico indígena de celebração. Segundo a cantora, era um movimento iniciado por índios americanos no final do século XIV com o intuito de ressuscitar seus antepassados. A dança era uma chamada para a comunicação com passado e futuro por intermédio dos sons e ritmos do presente, prática exclusiva de índios americanos. 
"I don't f*ck with the past / But I f*ck too much with the future", assim Patti se mostrava liberta do passado em "Rock'n Roll Nigger". Trecho de um discurso gravado ao vivo no show de "ressurreição" no CBGB's que serviu de introdução para "Rock'n Roll Nigger" (que seria o nome do disco, não fosse a guinada espiritual de Patti) - um embate entre Patti e William Burroughs no meio do público em que se clama uma redefinição do conceito de Arte. Essa canção também é uma ode a todos os que se sentem excluídos socialmente. 

Algumas letras do álbum fazem alusão direta a Babel, seu mais recente livro de poesias. Uma delas é "High On Rebellion", uma canção que reflete bem a faceta militante da cantora, também mostrada na já citada "Rock'n'Roll Nigger". Na letra desta última, ela alertava que "se você quiser viver fora da sociedade, então vai ter que encarar todas as responsabilidades" inerentes ao ato.

Apesar do sucesso, os músicos deixavam pistas de um certo esgotamento com a via-crucis do rock'n'roll. Mas ainda não havia chegado a hora. Assim Patti parecia se libertar de seus fardos, como atesta uma citação bíblica no encarte do disco: "Enfrentei uma grande luta / Encerrei minha maldição" (trecho do livro de Timóteo: capítulo 4, versículo 7). Outras referências à Bíblia são encontradas em "Privilege", com inserções de trechos do Salmo 23. 

FREDERICK
Canção emblemática do quarto álbum de Patti, dedicada a Fred "Sonic" Smith

A busca à serenidade almejada por Patti só se concretizou posteriormente, quando ela se apaixonou por Fred "Sonic" Smith, ex-guitarrista do MC5. Numa ocasião em Ann Arbor (USA), um problema com o mau tempo fez com que Patti ficasse desguarnecida de sua banda para uma apresentação. Seus músicos estavam em nova Iorque e não puderam decolar a tempo de entrar em cena. Patti teve que recorrer à ajuda da Sonic Rendezvous Band, novo grupo de Fred. Eles a acompanharam enquanto ela improvisou alguns números de poesia e dedilhava sua guitarra. Pouco tempo depois já estavam juntos. Ao término da excursão do álbum "Wave" (lançado em 1979), o casal se casaria em 1980. 

Patti concebeu o álbum como uma espécie de carta-de-despedida para seus fãs, pois iria largar tudo para se tornar uma mãe e esposa dedicada. O único a saber de seus planos era o produtor Todd Rundgren e, sem que Patti soubesse, Bebe Buel, sua "companheira" na época. Bebe chegou a ter um ataque de choro no meio das gravação por saber que se tratava de uma despedida, uma "infidelidade" da parte de Rundgren que irritou Patti, já que este havia jurado segredo. Uma amiga a visitou nessa época e se assustou ao ver a cantora no tanque lavando uma cueca de Fred: "Qual é? Estou lavando a roupa do meu macho?", falou na ocasião.

A capa do álbum traz Patti libertando uma pomba branca aprisionada numa gaiola. Após um período de reclusão, o tecladista dissidente Richard "DNV" Sohl retornou à banda nesse período, cheio de gás e morrendo de saudade dos ex-companheiros. Mal-recebido pela crítica, "Wave" celebra sua paixão por Fred em temas como a 'fleetwoodmackiana' "Dancing Barefoot" (um tema sobre heroína, já gravado pelo U2, em que Patti emula o vocal de Stevie Nicks) e "Frederick", uma declaração de amor e um emblema da nova fase na vida da cantora-poetisa. Nesta última, Patti faz poesia com as coisas simples e bonitas da vida, e também acena adeus - como em várias passagens do disco. 

O discurso contundente tem lugar na obra, ainda que de uma forma aleatória em algumas canções. A exceção vai para uma releitura de "So You Want To Be (a Rock'n'Roll Star)", uma antiga dos Byrds), um cantor bastante conhecido nos anos 60, que reflete seu descontentamento com a vida de estrela do rock. Era uma canção que Patti já conhecia há tempos, mas que antes não havia levado fé no desencantamento com o métier roqueiro sugerido pela música ainda que com certo otimismo. 
Os dois últimos shows da primeira encarnação do Patti Smith Group foram na Itália e transcorreram sob clima de estresse. Garotos da platéia invadiram o palco no final da apresentação e os músicos não tinham o mínimo amparo de segurança. Mas todo o caos se resolveu em paz, respeitosamente os rapazes sentaram no palco, num misto entre respeito e honra. Isso foi visto pelo grupo como uma metáfora na qual eles estavam passando a bola para que outros mostrassem a que vinham. Patti se despediu de um público de 70.000 pessoas com a saudação "Bye bye, hey hey", tirada de "Frederick", faixa-de-abertura de "Wave". Para celebrar o fim da banda, cogitou-se o lançamento de um disco ao vivo, o que não se concretizou. 

Fred oficializou seu amor a Patti em 1980 e logo o casal se mudou para Detroit. Apesar da vida doméstica, a música serviu aos dois como hobbie, sem as pressões da vida na estrada. Como foi dito na época, Patti conseguiu ser um mito do rock'n'roll sem ter que morrer para isso. 

DREAM OF LIFE: UMA CELEBRAÇÃO À VIDA DOMÉSTICA
 Referência ao Título do quinto disco de Patti Smith

Patti e Fred foram morar num subúrbio de Detroit e se dedicaram com afinco à vida em família. Nesse período fizeram poucas aparições públicas - na maioria das vezes, em eventos beneficentes. Somente nove anos depois, Patti voltaria à cena - só que acompanhada pelo marido. Em 1988, o casal lançou o plácido "Dream of Life", álbum produzido por Fred e Jimmy Lovine. Apesar de um trabalho concebido pela dupla, Fred achou melhor que se promovesse o álbum como o primeiro trabalho solo de Patti. Isso deixa bem claro que o extinto Patti Smith Group era uma banda que prestava auxílio luxuoso ao seu trabalho. Do antigo grupo, só participaram Jay Dee e Richard Sohl, line up complementado por músicos de estúdio. 
É seu melhor trabalho segundo os mais ferrenhos fãs da cantora, incluindo este que vos escreve. No disco, Patti parecia se inspirar em Chrissie Hynde, uma de suas "pupilas". Trata-se de uma retratação a seu público em formato pop, longe de sua imagem militante, presente apenas na inspiradora "People Have the Power": um hino populista em que clama que as pessoas não se rendam à líderes. 

São oito canções em que celebra sua felicidade: seu amor por Fred e sua família. Para se ter uma idéia, "The Jackson Song" é uma canção de ninar composta para seu filho mais novo. Mas "Dream of Life" também tem seu épico, "Where Duty Calls", uma canção sobre as filosofias religiosas da humanidade. Essa é uma prova da serenidade que a cantora passava naquele período. 

Patti concedeu poucas entrevistas e logo voltou à reclusão doméstica, onde se realizou como ser humano na educação e criação de seu casal de filhos: Jackson Frederick (agora com 17 anos) e Jesse Paris (8). Só reapareceria no início dos anos 90, quando fez aparições em recitais em alguns recitais de poesias. Apesar do "ostracismo" voluntário, o casal continuou trabalhando informalmente com música em jam sessions familiares que varavam a madrugada. 

Fred e Patti ainda planejavam lançar outro álbum em dupla em 1995, projeto interrompido após sua morte em decorrência de um ataque cardíaco, no final de 94. Um mês depois, seu irmão Todd morreria pela mesma razão. Outras mortes também são espectros aos quais Patti é levada a abordar com perspicácia durante o período em que compõe o novo repertório: Robert Mapplethorpe, seu "irmão espiritual", também morreu alguns anos antes, assim como seu antigo tecladista Richard "DNV" Sohl, morto logo após a gravação de "Dream of Life", a primeira morte decorrente de enfarte entre seus entes queridos. No novo repertório, a cantora "acende velas para seus mortos e continua dança", conforme a citação de Allen Ginsberg inserida no encarte de seu próximo álbum, repleto de alusões a anjos e fantasmas. 

Nessa ocasião, Patti foi confortada por Ginsberg, um de seus ídolos a quem havia se tornado amiga. Ela só aparecia em público em 1995, recitando poemas de Allen em Ann Arbor. Esses acontecimentos infelizes seriam retratados em seu próximo disco, trabalho em que tratou de sua dor a base de música. 

Mas antes do lançamento do álbum, Patti fez aquecimento colaborando para duas trilhas sonoras: uma versão para o standard de Nina Simone "Don't Smoke In Bed" foi incluída na trilha de "Ain't Nothing But She" e uma releitura para "Walkin' Blind", de Oliver Ray, presente em "Dead Man Walking". Ela ainda fez alguns shows em Nova York, antes de integrar a turnê itinerante Loolapalooza daquele ano. E só depois da excursão, adentrou novamente o Eletric Ladyland para registrar o repertório do novo disco, intitulado "Gone Again". 

ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
 Título de uma canção do álbum Gone Again

Lançado em 1996 e produzido por Malcom Burn e pelo escudeiro Lenny Kaye, "Gone Again" recebeu imediata aclamação da crítica. Já na capa do álbum, Patti aparece de luto e com a cabeça baixa. Sua fotografia faz uma discreta alusão ao trabalho de Mapplethorpe em Horses, mas ouvimos no disco são reflexões da cantora sobre a morte do marido. "Gone Again" foi um trabalho planejado pelo casal. Inclusive, o título do álbum foi escolhido pelo próprio Fred, que na época ensinava sua esposa a tocar guitarra. Algumas canções são parcerias com o falecido, com destaque para a maravilhosa "Summer Cannibals", melhor momento do álbum. 

No disco, Patti contou com o auxílio inestimável da guitarra de Tom Verlaine (Television) e de John Cale em algumas faixas e reúne antigos companheiros como Lenny Kaye e o baterista Jay Dee Daugherty. Este último é, até hoje, o único músico a acompanhá-la em todos os seus discos. Completaram o line up o baixista Tony Shenahan e o tecladista Luis Resto. "Gone Again" é marcado por canções lentas, arrastadas, que fazem fundo para as narrativas poéticas da cantora. Um dos temas mais fortes do álbum é "Dead to the World", que trata a morte como uma coisa boa, como se as pessoas apenas caíssem em sono profundo. Assim também é "My Madrigal", uma referência explícita ao luto por Fred. 

Para admiradores não-ortodoxos do trabalho de Patti, este é o seu melhor trabalho. Mas o álbum não é apenas uma elegia ao marido morto. Prova disso é uma homenagem a Kurt Cobain em "About a Boy", canção em que a improvisação impera nos shows, ao ponto de sua duração atingir quase quinze minutos. Outra homenagem é dirigida a Bob Dylan, na boa releitura de "Wicked Messenger". 
Paralelamente, Patti se concentrava esforços em dois novos livros. "Wild Leaves" e "The Coral Sea". No primeiro, compila textos em verso e prosa em memória de seus entes queridos; enquanto o segundo traz poemas em prosa em homenagem a Robert Mapplethorpe, compostos logo após sua morte em 89, em decorrência da AIDS. Nesse período, a poetisa também teria suas primeiros trabalhos compilados em um único livro, chamado "Early Work 1970/1979). 

Aproveitando uma folga da turnê de Monster, Michael Stipe (R.E.M.), um de seus maiores fãs se ofereceu para acompanhar Patti e sua banda em turnê junto Bob Dylan. Na ocasião, ele mesmo se descreveu como um mero roadie e fotógrafo. E aproveitou para publicar esses registros fotográficos em um livro chamado "Two Times Intro: On The Road with Patti Smith". O livro contém fotos de toda entourage da cantora, além de polaróides de seus ilustres amigos-ídolos William Burroughs e Allen Ginsberg. Michael se disse um privilegiado por testemunhar a turnê e mensurar a influência de Dylan no trabalho de Patti e, por conseguinte, a influência que a obra da cantora teve em sua carreira. 

Em turnê, Patti voltou a apresentar sua versão para "Gloria", mas com uma mudança no primeiro verso. Este passou a ser cantado assim: "Jesus died for somebody sins / Why not mine?", mais uma prova da constante reavaliação existencial a que sempre se submeteu.

Em 1996, a Arista preparou um presente para seus fãs: Patti teve todos os seus álbuns remasterizados e acrescidos de faixas inéditas. Eles podiam ser comprados individualmente ou compilados em um boxset. Em abril deste ano, Patti e Allen Ginsberg fizeram uma aparição pública num evento beneficente para a Jewel Heart (uma organização budista tibetana). Na ocasião, Ginsberg fez uma memorável introdução à apresentação de Patti e recitou vários de seus poemas. Nada mal para uma pessoa que era tida como lunática na ocasião de seus primeiros trabalhos com poesia. 

Posteriormente, o poeta beat ainda a acompanharia em várias de suas performances até a última colaboração conjunta no evento beneficente Tibetan New Year's, no Carnegie Hall em fevereito de 97. Nesse ano, Ginsberg morreu de câncer, aos 71 anos. 

PAZ E BARULHO
Título do sétimo disco da cantora, Peace And Noise

Em 1998, Patti retorna à cena com Peace And Noise, seu trabalho mais introspectivo. Esse estado de espírito se reflete na capa do CD em que a cantora aparece sentada em sua cama rabiscando alguns versos. O disco também deixa transparecer seu flerte com a cultura tibetana, principalmente sua filosofia espiritual a qual foi iniciada pelo clássico Livro Tibetano da Vida e da Morte - a mesma obra que inspirou Billy Corgan no épico Mellon Collie and Infinite Sadness. 

Na nova empreitada, Patti contou com Lenny Kaye e o novato Oliver Ray, nas guitarras, além do baixista Shanahan e J. D. Daugherty. Oliver é seu novo namorado e deu sangue novo à banda, em muito contribuindo ao novo repertório. Praticamente gravado ao vivo em estúdio, Peace And Noise traz de volta a rusticidade de Radio Ethiopia, e uma de suas faixas, "Memento Mori" é um improviso de 11 minutos dedicado à memória de seu ídolo-amigo William Burroughs. Trata-se de um trabalho igualmente passional ao anterior "Gone Again", mas com um ponto de vista externo à vida da cantora. 

Sonoramente, o álbum alude à pegada roqueira do Patti Smith Group, lá pelos idos anos 70. Mas no que diz respeito ao discurso, da primeira ("Waiting Underground") à última faixa ("Last Call"), "Peace And Noise" é um trabalho mais direcionado para questões políticas e deveres sociais do que para adversidades particulares. Para se ter uma idéia, "Last Call" faz alusão ao episódio de suicídio coletivo dos adeptos da seita Heavens Gate, que acreditavam no fim do mundo. Esta conta com a participação de Michael Stipe (REM), nos backing vocais, como uma retribuição à participação de Patti no álbum "New Adventures In Hi-Fi" (na faixa "E-Bow the Letter"). 

Uma das razões para tal preocupação ideológica se deu após uma comparação dos dias de hoje com os anos 60, época em que as preocupações sócio-políticas eram bem mais evidentes. Patti reconhece que atualmente paira no ar uma certa alienação conformista. 

Para promover o álbum, Patti começou dando entrevistas para zines e jornais ginasiais, em vez de privilegiar dinossauros da imprensa musical como as revistas Spin e Rolling Stone. Expressando sua militância underground, a despeito dos antigos fãs que a tacharam como "vendida" em determinado momento de sua vida, a cantora começou sua excursão em shows memoráveis no minúsculo CBGB's, antecipando uma turnê nacional. De acordo com o noticiado na época de seu lançamento, boa parte de Peace And Noise é composto pelo material idealizado como o segundo disco do casal "Fred & Patti". 

Apesar de promovido como um trabalho em conjunto, uma das canções do álbum foi composta somente por Patti: "Death Singing". A canção foi dedicada a Robert Curtis Dickerson, vulgo Benjamim, líder da banda Smoke. Benjamim era um expoente da cena musical de Atlanta há pelo menos uns dez anos e nessa época fora apresentado a Patti por Richard Sohl. As canções de seu grupo eram tragicômicas, repletas da decadência e dos riscos a quem se submetem o que se configura como a escória da sociedade. 

Um assumido speedfreak esquecido pelos parentes, Benjamim era portador do vírus HIV e seu estado físico somado ao auto-paródico senso de humor muitas das vezes afastava as pessoas que queriam ajudá-lo. Uma pessoa que não se deixou levar pelo medo foi Patti Smith, a mesma pessoa que mudou sua vida em 1976 quando este se deparou com o álbum Horses. Esta começou a visitá-lo após uma de suas freqüentes estadias em hospitais, havia escutado seus CDs e, para seu espanto declarou-lhe que seu trabalho havia sido fonte de inspiração para ela. Em forma de alegoria, esta faixa conta a história de um vocalista de uma banda de rock que morre de AIDS em pleno palco. 

Boa parte do novo repertório foi composto à moda antiga, em jam sessions promovidas pelos músicos - o que se confirmado em ótimos shows. Após se dar por satisfeita com a promoção do álbum, Patti recolheu-se ao lar, o que fez com que alguns fãs achassem que a cantora fosse se dedicar a outro período em exílio doméstico. Isso não se confirmou e estes podem agora se contentar com Gung Ho, mais um motivo para que estes continuem ardorosamente a adulá-la por vários anos.
No momento, fala-se de uma coletânea abrangendo o melhor de toda a discografia da cantora, com um repertório escolhido pelos fãs na Babel List e no site oficial de Patti Smith!