Cypress
Hill - When The Shit Goes Down You Better Be Ready
por
André “Cardoso” Czarnobai
Eu lembro bem daquela tarde. Eu cheguei
do colégio, joguei minha mochila num canto e fui pegar minha tv
de ver a MTV. Na época o sinal aqui em Porto Alegre era muito ruim
e o canal só pegava em UHF. Como eu não tinha antena de UHF,
a solução prática para assistir MTV aqui em casa era
usar uma daquelas televisões minúsculas de camelô que
tem seletor UHF e tela p&b de 9 polegadas. Pra piorar tudo - a imagem
vinha com chiados horrendos em dias de chuva.
Naquela tarde alguma coisa mágica
aconteceu quando passou aquela vinheta "a música do futuro" ou algo
assim. Uma batida profunda, sons agudos, vocais anasalados. Fiquei embasbacado.
Cypress Hill dizia na tela. Procurei "cypress" no dicionário e descobri
que significava cipreste. Entrei numas que "colina de ciprestes" queria
dizer cemitério. O logo da banda tinha uma caveira. É, parecia
fazer sentido.
Alguns dias depois, cantarolei um
trechinho que eu tinha ouvido na propaganda. Era "Insane in the Brain",
o primeiro hit mundial do CH. Um amigo skatista que convivia com o pessoal
do Da Guedes veio me perguntar se eu conhecia Cypress Hill. "Só
essa música". Ele decidiu que ia me emprestar uma fitinha. Emprestou.
Coloquei no meu som e apertei o play. Pensei que o disco tinha pulado.
Juro que a primeira vez que ouvi eu pensei que o disco tinha pulado.
Não
era "Black Sunday", o disco que tinha "insane in the brain". Era o primeiro
disco, o disco de estréia do trio californiano, batizado singelamente
com o mesmo nome da banda. O disco começava com o petardo "Pigs",
que faz alusão à clássica brincadeira infantil de
chamar os dedinhos das crianças de porquinhos e inventar uma ocupação
para cada um deles. No caso, os "porquinhos" do CH são os implacáveis
homens da lei. O disco trazia outras pérolas como "How i could just
kill a man", "Hand on the pump" e "Latin Lingo", com participação
de Mellow Man Ace.
Pronto. Uma audição
foi tudo que bastou pra me viciar. Os vocais anasalados de B-real combinados
com as chicanices grosseiras de Sen Dog e algumas intervenções
mais comportadas do Dj Muggs simplesmente me pegaram. Não havia
mais volta - agora eu precisava conhecer mais. Na época eu sabia
muito pouco sobre a banda. Sabia que eles eram rappers da california e
descobri que eram defensores abertos do consumo da maconha. Fiquei muito
interessado.
O disco tem influências fortíssimas
da latinidade. Sen Dog e B-Real são filhos de imigrantes mexicanos
e não é raro fazerem uso de palavras em espanhol no meio
dos seus discursos. Não é por acaso que uma das músicas
do álbum é cantada totalmente em espanhol (Tres Equis, nome
dum trago mexicano) e é fortíssima a conexão com o
veterano do rap chicano Mellow Man Ace. O estilo desenvolvido pelo CH ganha
o nome de "spanglish", um rótulo mais que merecido.
Comecei a traduzir algumas letras,
mas tudo que eu encontrava eram frases gangster e um sem-número
de gírias do sul de Los Angeles. Nesse ponto foi bom traduzir as
letras do Cypress: hoje em dia eu sei que "O'mailey" e "One-timer" significam
"policial" e que "187" é o código para assassinato no estado
da Califórnia. Nada de muito útil aparentemente, mas a gente
nunca sabe quando vai precisar desse tipo de conhecimento.
De
toda forma, a grande redenção veio mesmo com a descoberta
do segundo - e melhor - álbum da banda, "Black Sunday", de 93. Além
do sucesso "Insane in the Brain", o disco trazia escancaradas mensagens
de apoio à legalização da maconha em todas as faixas
(inclusive nessa), discurso que rapidamente transformou-se em bandeira
principal da banda. A música que começa o ritual chama-se
"I wanna get high", algo como "eu quero ficar doidão" e aconselha
até o então presidente Bill Clinton "to go and inhale" no
clássico episódio do "fumei mas não traguei".
Sem dúvida a música
que mais representa essa fase declaradamente maconheira da banda é
"Hits from the bong", que conta com o sample muito bem aplicado de "Son
of a preacher man", de Dusty Springfield. A música é um convite
ao consumo da erva num cachimbo de água muito comum em países
árabes (o "bong"), tornado muito popular na década de 70
no ocidente. O encarte do disco traz diversas informações
interessantíssimas sobre a polêmica erva, além de comparações
da sua periculosidade em relação ao consumo de cigarros e
álcool. O disco ainda traz o uso do "spanglish", ainda que um pouco
mais fraco do que no trabalho anterior, especialmente na faixa "Lil'putos".
O disco foi um sucesso impressionante
e tornou o Cypress Hill conhecido mundialmente, tendo inclusive se apresentado
no Brasil, num apoteótico show em São Paulo. O discurso de
legalização da maconha continuava a ser a missão principal
da banda, que já incorporava algumas das palavras de ordem de famosos
reggaeman. Em 94 a banda participa do projeto "Big Blunts", uma série
de coletâneas de dancehall e raggamuffin da gravadora Tommy Boy (uma
das pioneiras do hip hop) e regrava o clássico "Under mi sleng teng",
de Wayne Smith, considerado o primeiro dancehall da história.
Nesse
ponto algumas desavenças começam a surgir dentro da banda.
Muggs sempre foi contrário ao lado chicano do Cypress Hill. Dizem
que os discos seriam muito mais chicanos se não contassem com a
mão de Muggs na produção. O próximo disco seria
o mais "americano" de todos os álbuns do Cypress Hill. B-Real, resignado,
cede. Sen Dog fica contrariado, mas também cede. E assim nasce em
95 "Cypress Hill III", com o subtítulo de "Temples of Boom".
É realmente o disco mais americano
do Cypress Hill, com uma sonoridade muito mais próxima do hip hop
nova-iorquino e do trip hop. Praticamente inexiste o "spanglish" e os vocais
de Sen Dog são claramente reduzidos. Há a participação
de U God e RZA, do poderoso Wu-Tang Clan em uma faixa e do percussionista
Eric Bobo nas apresentações ao vivo. Um tanto frustrado,
Sen Dog começa a dedicar-se à produção do grupo
Delinquent Habits, que é tudo aquilo que o Cypress seria se fosse
mais chicano.
O disco não recebeu críticas
tão boas quanto o seu antecessor e o descontentamento de Sen Dog
acabou produzindo uma saída da banda. Durante o período de
crise foi lançado um medonho disco de b-sides e remixes chamado
de "Unreleased and Re-vamped", que apesar de contar com produtores do quilate
de Wyclef Jean, não decolou. Em 97 sai o pouco inspirado "IV", do
qual só se aproveitam duas músicas, justamente as que soam
mais chicanas: "Tequila Sunrise" e "Dr. Greenthumb".
Bastante
desgastada, a banda faz um show apenas regular no festival de Woodstock
e começa a repensar sua carreira até que em 99 ela paga aos
fãs um merecido tributo com o excelente álbum "Los Grandes
Éxitos en Español", apenas com regravações
em espanhol dos outros álbuns. "Insane in the brain" virou "Loco
en el coco" e "I wanna get high", "Yo quiero fumar". São 14 canções,
7 delas traduzidas pelo sempre presente Mellow Man Ace. O disco traz também
uma participação especial de Fermín IV, da banda mexicana
Control Machete na inédita "Siempre Peligroso".
Mais uma vez de bem com o seu público,
o Cypress podia simplesmente ter parado de lançar discos - todos
os seus fãs estariam satisfeitos. Mas eis que surge no horizonte
do ano 2000 uma nova idéia. Seguindo a onda do rap norte-americano,
o Cypress Hill optou por embarcar no hardcore e lançou "Skull and
Bones". O disco não tem mais nenhum elemento que lembre o velho
CH: não há "spanglish", não há bases com batidas
profundas do dj Muggs nem letras sobre a maconha. A nova pose do Cypress
é hardcore, do gangsta superstar, assim como outros milhares de
bandas.
Aliás,
esse último disco tem até guitarras.
Quem diria.
Abandonei a banda. Parei de ouvir
Cypress Hill no momento que ouvi na Saraiva alguns minutos de cada faixa
do disco novo. É triste quando as bandas nas quais tu depositava
tanto tempo e dinheiro resolvem trair a tua confiança em troca de
dinheiro, modismos ou quem sabe até mesmo satisfação
pessoal. Mas as coisas são assim, impermanentes. Tudo acaba, cedo
ou tarde. É apenas questão de tempo. E dizem os mais velhos
que o que é bom sempre dura pouco. Pois bem, que pena.
André
“Cardoso” Czarnobai, é editor do melhor e-zine da via-láctea,
o Cardosonline ( www.cardosonline.com
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