Bob Mould - Canções e Histórias 
por Marcelo Silva Costa

Despretensiosamente chega às lojas brasileiras "Besides", coletânea de lados b, faixas ao vivo e inéditas do Sugar. Quem????

Ok, hora de limpar a poeira desse negócio chamado história e, antes de escrever uma linha sobre "Besides", voltar no tempo, lá para o começo de 1980, época em que o trio Bob Mould, Grant Hart e Greg Norton são mais conhecidos como Husker Dü. Formado em Minnesota, Estados Unidos, em 1978, mas só estreando nos palcos em março de 1979 e em vinil apenas em 1981, o Husker Dü elevou o hardcore inaudível encharcado de feedback a categoria de clássico. Basta fuçar álbuns como "Everything Falls Apart" (1982), o ep "Metal Circus" (1983) e a estréia da banda no mítico selo SST (casa de Black Fag, Dinosaur Jr, Descendents, Minutemen e Screaming Trees): "Zen Arcade" (1984). Muito do que o rock independente fez nos anos posteriores foi influenciado por esta tríade de álbuns. Em poucas palavras, o Dü era empolgante, visceral, barulhento e inteligente. 

Mould conheceu Hart quando passava em frente a uma loja de discos e foi "atacado" por riffs e riffs de punk rock. Ao entrar na loja conheceu o balconista, Hart, e daí a montar uma banda foi um pulo. Ao duo (Mould na guitarra e Hart na bateria) uniu-se o baixista Greg Norton.  Dizer que um era baixista e outro era guitarrista é ser bonzinho demais com os caras. Ninguém sabia tocar nada e o primeiro show foi composto apenas de covers dos Ramones. O trio seguiu, montou seu próprio selo (o Reflex), agregou novas bandas e lançou seus discos até assinar distribuição pelo selo SST. O primeiro álbum pela SST foi o vinil duplo "Zen Arcade", que Mould apresentava como "um cruzamento entre 'Jesus Cristo Superstar', 'A noviça rebelde' e 'Evita'". Bem, é mais fácil simplificar dizendo que era uma mistura de metal com hardcore tocados com garra e insanidade. Inaudível e ensurdecedor. 

A fama da banda só fez aumentar no circuito independente até chamar a atenção das majors. Quem ganhou a parada foi a Warner que colocou a dupla matadora de álbuns "Candy Apple Grey" (1986) e "Warehouse" (1987), nas prateleiras do mundo todo, Brasil incluso. 

Esses dois álbuns resumem quase quatro décadas de rock and roll: de Chuck Berry a Sex Pistols, de Yardbirds a Television, de The Who a Ramones, de R.E.M. a Black Fag, de Damned a Pavement e, sim, ainda hoje, Nirvana, Jesus and Mary Chain, Black Rebel Motorcycle Club, White Stripes. Está tudo aqui. Barulho, melodia, letras sensacionais (não à toa, o subtítulo de "Warehouse" é "Songs and Stories"), apresentações ensandecidas que terminavam com o Grant Hart na porta do local do show cumprimentando o público que saia. "Candy Apple Grey" acena com levadas acústicas e arranjos densos sem abandonar o barulho. Nas letras, teorias sobre a decadência do rock. Já "Warehouse" une à usina de metal e punk um ingrediente que havia ficado sempre na coxia nos discos anteriores: Beatles. O resultado é acachapante, vide a valsa punk com reminiscências byrdianas "She Floated Away", a beatlemaniaca "Ice Cold Ice" (com direito a corinho no refrão) e as porradas, ora a lá Ramones como em "Could You Be The One", ora rockabilly como em "Actual Condiction". Vinil duplo (o cd é simples), 20 músicas, inspiração no volume máximo. O fim? Oras, muitas drogas, a cobrança do sucesso que começava crescer e Bob Mould, nosso amigo, decide pular fora do barco em 1988 e nadar sozinho. 
 

No ano seguinte Mould assina um contrato de três álbuns com a Virgin e coloca na praça seu primeiro álbum solo, "Workbook", apostando na veia acústica que já assinalava querer surgir no cinzento "Candy Apple Grey". Mesmo sendo acústico, o "manual de instruções" de Mould não tem nada de pop. Carrega na psicodelia, no country rock e em canções que beiram o heavy sem nenhum resquicio de melodia. Nas letras, cicatrizes abertas ("Poison Years", "Sinners And Their Repentances"), desejos futuros ("Whishing Well") e solidão ("Lonely Afternoon"). O álbum foi logo alçado a clássico e as qualidades do Bob compositor reconhecidas. Vendeu razoavelmente e emplacou dois singles.  Virada de ano e Mould lança outro álbum, "Black Sheets of Rain". A gravadora não deu a mínima e o álbum passou totalmente desapercebido, apesar de seguir uma linha ascendente em relação ao anterior e manter poucas mudanças no som. Chamam a atenção a tristeza da épica e densa/tensa faixa título que abre o álbum em sete longos minutos, e as dolorosamente matadoras "The Last Night",  "Out Of Your Life" e "Stop Your Crying". Dois álbuns com predominância em temas densos. Será que Mould desistiu da barulheira pop? A resposta só voltaria a pulsar mesmo no peito de Bob após uma audição do recente lançamento de uma das várias bandas influenciadas pelo Husker Dü, uns tais de Pixies.  "Trompe Le Monde", o último da turma de Boston chapa Bob Mould de tal maneira que o cara decide montar um novo grupo. Assim nasce o Sugar, um trio nos moldes do velho Husker Dü, contando com David Barbe no baixo e Malcolm Travis nas baquetas. O som é uma continuação de "Warehouse", camadas de guitarras atoladas em feedback batalhando para cobrir linhas melódicas escancaradamente assobiáveis. 

De cara, o primeiro lançamento do novo grupo (que, agora, é apadrinhado pela Riko) ganha destaques nas principais publicações do mundo e freqüenta várias listas de melhores do ano. "Copper Blue" ganhou as prateleiras mundiais em 1992 destacando várias canções, entre elas, "A Good Idea" (a canção mais Pixies que o Pixies não fez), a balada rocker "The Slim", a lenta e guitarreira "Man On The Moon" e o single "If I Cant Change Your Mind". Shows, blá blá blá e 350 mil cópias vendidas começaram a incomodar Bob Mould. O segundo álbum do Sugar saiu quase como um acidente, depois de Bob ter gravado quase um álbum inteiro e jogado fora. "File Under: Easy Listening" ganhou as lojas em 1994 e não é tão inspirado quanto a estréia, mas traz boas canções como a power ballad pop "Believe What You’re Saying" e a matadora "Explode And Make Up" que fechava o álbum com um doce "I Hate You". O que se prenunciava antes de "File Under" chegar às lojas só acabou acontecendo no meio de 1995. Bob Mould, no auge, manda a banda pros infernos e a direção da Riko perde um nome de peso em seu cast. Querendo faturar os últimos trocados, a gravadora solta "Besides", coletânea de lados b, faixas ao vivo e inéditas. Mould reclama, mas o lançamento é oportuno e, agora, chega ao Brasil via Trama. 

"Besides" abre com "Needle Hits E", a típica canção Sugar. Bateria abrindo na porrada, vocal empolgante, baixo a lá Pixies e guitarras varrendo tudo com microfonia. "If I Cant Change Your Mind" aparece em versão acústica, docinha docinha. De um show em Chicago sai uma versão para "Armenia City In The Sky", uma das melhores canções de um dos melhores álbuns do The Who ("Sell Out", de 1967). A festa não acaba. "Besides" ainda conta com uma versão acústica de "Believe What You’re Saying" que engordou a edição nacional de "File Under" como bônus (como o primeiro, também pela Natasha Recs) e a dobradinha "Explode and Make Up"/"The Slim" de um show na First Avenue, em Minneapolis. As inéditas também chamam a atenção. "Try Again" é conduzida por guitarras limpas. "Mind Is Na Island" é guitarreira e caberia perfeitamente em "Warehouse" enquanto "Going Home" lembra Neil Young, no título e nas guitarras lentas e altas. 
 

Finado o Sugar, Bob Mould voltou à carreira solo. Para pagar o álbum que devia a Virgin sai "Poison Years" (1994), coletânea que junta cinco faixas de "Black Sheets of Rain", duas de "Workbook", uma inédita sensacional ("All The People Know") mais cinco canções ao vivo de um show de 1989. 

Material inédito só em 1996. Intitulado simplesmente de "Bob Mould" mas conhecido por muitos como "Hubcap", o quarto disco do cara é totalmente pessoal. Bob entrou em estúdio sozinho com melodias e letras na cabeça e gravou tudo. Bateria, baixo e guitarra emulam o som que Mould imagina que uma banda teria que ter. "Fazer esse disco foi algo que sempre quis, sozinho, para mim mesmo. Escrevi cada palavra, toquei cada nota. Não há nenhum refinamento nos pensamentos, nenhuma explicação para outros músicos a respeito da emoção crua. Esse é o meu som", definiu Bob a época. Nas letras, ataques ferinos e doloridos ao policiamento alternativo que virou o rock underground na década de 90 e, claro, relacionamentos terminados. A (novamente) densa faixa de abertura "Anymore Time Between" e o rock alternativo "I Hate Alternative Rock" são o cartão de boas vindas. O encarte é esclarecedor. Cada letra é acompanhada por símbolos altamente explicativos. Assim, a "Roll Over And Die" é acrescentada uma faca, enquanto "Fort Knox, King Solomon" tem como fundo um punhado de dólares. Nos créditos: "Bob Mould is Bob Mould". Yeah.

O cara não para e dois anos se passam até que Mould retorna com "The Last Dog And Pony Show" (1998). Novamente com uma banda, Bob mantém a carreira em alta com outro álbum empolgante. A "fórmula" é a mesma dos álbuns anteriores: guitarras altas, melodias assobiáveis, baladas matadoras e letras inteligentes. O detalhe curioso desse lançamento é que o cd é duplo. Como Mould não é lá muito chegado a conversar com a imprensa, a Riko prensou um cd com uma entrevista do músico e o cd acompanha "The Last Dog And Pony Show"

2002 marca o retorno de Mould ao mercado. Porém, "Modulate" é diferente de tudo que Bob já fez em carreira. Mould abandona a parede de guitarras costumeira para usar leves batidas de eletrônica. Faixas como "180 Rain" e "Lost Zoloft" soam como uma mistura de Peter Gabriel com Kraftwerk. Apenas em "Semper Fi" e "Come On Strong" que as guitarradas aparecem. "Modulate" é um deslocamento aventuroso de um músico que prima por criar gemas pop, mas não quer deixar-se levar pela fome da indústria. Como Neil Young. Mas, Bob Mould é Bob Mould, ok. 
 

10 coisas a saber sobre Husker Dü e Bob Mould 

1) Seria uma tremenda injustiça creditar toda fama do Husker Dü a Bob Mould. Grant Hart compunha e cantava com freqüência e já lançou dois excelentes álbuns solos: "Intolerance" (1989) saiu na confusão do termino do Husker Dü e recebeu boas criticas. Mas o grande álbum de Hart é "Good News For a Modern Man" (1999) em que o ex-baterista do Dü flerta com o rock anos 60, Beach Boys, Animals, em canções melodiosas e empolgantes. 

2) No momento em que você lê esse texto, três álbuns comentados aqui podem ser facilmente encontrados nas lojas. "Besides" do Sugar acaba de ganhar lançamento nacional, enquanto "Bob Mould" e "The Last Dog And Pony Show" saíram poucos meses atrás, todos via Trama. O detalhe é que mesmo sendo duplo, "The Last Dog" é vendido pelo preço de cd simples. 

3) "Copper Blue" e "File Under: Easy Listening" foram lançados no Brasil pelo selo carioca Natasha Records em 1992 e 1994, respectivamente. Uma boa garimpagem em sebos e você poderá encontrar essas preciosidades. 

4) Entre seus dois álbuns de carreira, o Sugar lançou o ep "Beaster". Com seis faixas, "Beaster" caracteriza-se pela experimentação e é um item obrigatório em se tratando de Bob Mould, vide "Walking Away" (com órgãos de igreja), "Feeling Better" (com teclados de timbres oitentistas). Mas o Mould de sempre também está aqui, vide a guitar song, "Come Around" e "JC Auto", que também aparece ao vivo em "Besides".

5) "Candy Apple Grey" (1986) e "Warehouse" (1987) do Husker Dü foram editados em vinil no Brasil. Vale a busca em sebos. "Warehouse" em vinil é duplo, mas a edição em cd conseguiu encaixar as 20 matadoras faixas. 

6) "Everything Falls Apart" foi relançado pela Rhino com o nome de "Everything Falls Apart and More" e seis faixas bônus. Aqui temos o Husker Dü em essência. Gravação tosca captada ao vivo em estúdio. Como curiosidade, uma cover de "Sunshine Superman" do Donovan. 

7) Em 1994, a Warner colocou nas lojas "The Living End", registro de um show do Husker Dü em 1997. A pauleira come solta. Entre as 24 (!) faixas, quase todos os clássicos do Dü em mais de 76 minutos de entrega total ao rock and roll. Fecha com uma cover do Ramones, "Sheena Is A Punk Rocker". 

8) Item bacana na discografia do Husker Dü é o ep "Eight Miles High/Makes No Sense At All". A primeira é uma notável desconstrução do clássico dos Byrds enquanto a segunda é uma faixa retirada do álbum "Flip Your Wig". O ep ainda conta com uma ensurdecedora versão de "Masochism World" e outra cover, desta vez mais suave, de "Love Is All Around", de Sonny Curtis, tema do seriado norte-americano Mary Tyler Moore (não é a mesma canção do Troggs que o REM gravou). 

9) "Fiquei enciumado quando eles lançaram 'Trompe Le Monde'. Como alguém pode fazer um disco tão bom". Mould sobre os Pixies.

10) Uma última frase, do release de "Hubcap": "Reconheço que a maioria das pessoas não entende os conflitos e contradições do mundo dos negócios da música que se tornaram aparentes para mim durante os últimos anos. Parâmetros de sucesso, falta de privacidade, preocupação pela obra – fiz alusão a como esses tópicos me afetaram no passado. Sempre tentei ser tão honesto quanto possível o mesmo tempo em que tentava manter a pouca privacidade que eu merecia. (...) Valorizo demais meu trabalho e tenho orgulho demais para não ser afetado pelos cínicos". Ponto final.