Um sacríficio
por
Cecilia Gianetti
Go-gonzo
Girl => http://gogonzogirl.blogspot.com
"Alguma coisa temos que sacrificar."
Machado de Assis
Dorothy
Parker
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Sinclair
Lewis
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Fernando
Sabino
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Scott
Fitzgerald
|
Dorothy Parker achava que escrever
era um saco, um suplício. Por isso gostava de se distrair (destruir,
pra falar a verdade) pelas festas e bares durante meses entre um livro
e outro, até que conseguisse novamente sentar-se para dar conta
de alguma história como "Big Loira" ou mais versinhos neuróticos
sobre homens. Passou a vida tentando se suicidar sem sucesso, morreu de
velha (e um pouco de cachaça também), tendo deixado um testemunho
aberto daquelas tentativas frustradas no poema "Resume":
Razors pain you;
Rivers are damp;
Acids stain you;
And drugs cause cramp.
Guns aren't lawful;
Nooses give;
Gas smells awful;
You might as well live.
Sinclair Lewis afirmava que
"escrever é a arte de sentar o rabo na cadeira". Tal dificuldade
de encontrar-se na posição ideal em frente à máquina
é muito comum entre aspirantes a escritor de ambos os sexos devido
a uma intensa atividade que porventura mantenham em outros setores menos
literários. Neste caso, a solução para o (a) jovem
que não consegue sentar para escrever seria que deitasse com um
laptop assim, meio de ladinho, numa cama ou divã, ou comprasse almofadas
com um furo no centro. Isso lhe garantiria pelo menos duas posições
confortáveis para dar prosseguimento à
sua obra.
Mas não é de sacanagem
que eu quero falar. É sobre "O Preço da Admissão".
Fernando Sabino tem um texto com este nome, onde lista diversas
citações de escritores sobre, porra, adivinha? escrever.
O trecho abaixo é dele mesmo:
"... me espanta que alguém
busque se iniciar na literatura sem mais nem menos, pouco ou quase nada
querendo dar de si. E omitindo o essencial a alguém que se inicia:
a sua própria experiência oferecida em sacrifício (...)
O primeiro passo o espetáculo de si mesmo que o escritor tem a oferecer,
expondo-se à curiosidade ou mesmo à execração
pública sem o qual os outros passos não virão."
Agora, de Scott Fitzgerald:
Você tem que vender seu coração, suas reações
mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente,
as pequenas experiências que você poderá contar ao jantar.
Isso é especialmente verdadeiro quando você começa
a escrever, quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender
os outros ao papel, quando nada tem da técnica que leva tempo para
aprender. Quando em suma você tem apenas emoções para
vender. O amador, vendo que o profissional, depois de aprender tudo que
podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial
, como as reações mais superficiais de três moças
comuns, por exemplo, e dar-lhe encanto e graça o amador só
consegue realizar sua habilidade de transferir emoções a
outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar
do coração a trágica história de seu primeiro
amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este,
de qualquer forma, é o preço da admissão."
Já tive problemas porque escrevi
sobre situações e pessoas que eu conheço e observo,
e que deixaram uma impressão forte em mim. Nunca publiquei nada,
só na web. Mesmo assim já aturei quem se reconhecesse numa
linha ou outra
que tive a indecência de escrever.
Ouvi correções: "não foi assim que aconteceu". Recebi
indiretas com referências a trechos do que escrevi e quando isso
acontece é como se os mortos falassem: uma vez jogados no papel,
eu procuro outra cena. A menos que, mais que um detalhe interessante, sejam
gente que eu amo.
Se alguém decidir fazer uma
aposta e lançar um livro com meus textos, eu posso acabar metida
numa situação "Desconstruindo Harry", como aquela em que
o Harry/Allen é encurralado
em casa sob a mira do revólver de uma
ex-amante, aborrecida com o retrato
mal-disfarçado que fez dela em um romance. Frankly, my dear, I don´t
give a rat´s ass. Qualquer um que me faça virar uma noite
escrevendo e não seja a trabalho, que me dê vontade de descrever,
contar uma história, tirar sua foto e ver como ela fica revelada;
que me obrigue a reprocessar o que é e recriar tudo; que seja
importante, único, só
por essa noite perdida, vale a pena. Não devia se sentir invadido
ou saqueado: ser misturado à ficção pode ser a sua
única chance de se tornar interessante.
Já tentou fotografar uma criança
hiperativa? Saem uns borrões. Ela é aquele monte de riscos
perto do sorveteiro. Inspirações são ingratas. Cobram
realidade. Verdade. Precisão. Não sabem do sacrifício,
nem que é preciso correr atrás do tal preço de admissão.
E precisam saber, principalmente, que o gesto que fizeram, a risada, o
espirro que deram podem virar um livro de 500 páginas mas que ele
não será a sua biografia. Nem a do escritor. Se acham donas
do que é criado sobre um segundo que nos concedem. Não entendem
que um trechinho do seu tempo, dez minutos do seu dia, impulsionaram três
páginas de história. E só.
De "Retrato do Jovem Escritor Etc."
(http://entreparenteses.blogspot.com)
:
" - ainda tá acordado? (...)
- a gente não devia estar aqui.
- e qual o problema? não tem
ninguém aqui mesmo.
- muito obrigado pelo otimismo.
- otimismo é superficial, um
cuspe na realidade, e eu não cuspo na realidade.
- é por causa daquela folha
de caderno de novo? pra quê você leu? escrevi aquilo há
tanto tempo... e nem naquele tempo significava qualquer coisa. só
escrevi pelo prazer estético de ver escrito, não era a verdade.
não tinha uma linha de verdade sequer nela. eu ainda não
sabia que eu não era eles, que eu não precisava ser. você
não tem idéia do que é ouvir vozes na cabeça,
essas pessoas chegam e começam a falar e agir e não sossegam
até que estejam no papel. e aí fazem novas coisas e recomeça
a festa e eu tenho que escrever de novo. mas quando aconteceu primeiro,
pfff, eu não sabia! eu
não sabia que eram eles, que
eram outras pessoas! eu achei que eu realmente estava sentindo tudo aquilo.
- esta é a pior desculpa que
eu já ouvi. se você fosse maduro, diria logo de uma vez que
tava com raiva de mim e tinha escrito aquilo pra desabafar. mas vem com
essa conversa de escritor que só o teu fã clube gosta e eu
sou obrigada a ouvir isso.
- não ouça se não
quiser. gostaria muito que a minha conversa de escritor não te chateasse,
mas se chateia, não há nada que eu possa fazer porque é
isso que paga as minhas contas e, ainda que não pagasse, eu não
teria escolha. seria um funcionário público muito infeliz,
dormindo uma hora por noite pra conseguir escrever e (...)
- continue escrevendo, eu vou embora.
- embora de vez?
- embora de vez. converse com as suas
vozes, tenho certeza de que elas têm a coisa certa pra te dizer.
- estou escrevendo sobre um escritor.
- ah, é? e ele fica sozinho
no final?
- não sei. não sou eu.
é ele.
- legal que você já tenha
aprendido isso. mas não quer dizer que você seja um bom escritor,
só porque entendeu a diferença. pode me explicar uma coisa,
palhaço? por que você troca os pronomes?
- você acha que ninguém
lê? então você tá indo embora por causa de um
lixo que ninguém lê? já viu como é incoerente
tudo isso?
- eu que o diga!
- já disse que você não
precisa ir embora. só quero minha privacidade e algumas horas sozinho
pra terminar esses diálogos. preciso disso pra viver. eu amo você
e querer ficar sozinho pra escrever não quer dizer que eu não
precise de você.
- você é ruim tanto falando
quanto escrevendo. tem coisa que você escreve que eu chego a ficar
vesga quando leio, de tão ruim que é. eu fico com vergonha
por você já que você não percebe o quanto é
ruim."
Se você
se viu retratado aqui de alguma maneira, ofensiva ou não, ou reconheceu
aqui alguma frase que tenha me dito ou pensado em me dizer, não
me processe porque não tenho dinheiro. Se você quer brincar
e acha que com isto estou sofrendo. Se você não entendeu.
I don´t give a rat´s ass.
sacrifício
escrito ao som de literatura brasileira (graforréia xilarmônica)
in a sentimental mood (john
coltrane) bloco do eu sozinho (los
hermanos)
Leia, de Cecilia Gianetti
Cheirinho
de Dendê II |