Cheirinho de Dendê II 
por Cecilia Gianetti

Em um espaço do finado e-zine 1999, do Alexandre Matias, escrevi naquele ano algumas colunas sobre tropicalismo. Numa delas, perguntei por que ainda não havia surgido outro movimento no Brasil com a força do tropicalismo. Pra que eu fui perguntar (“pra que eu fui perguntar”, o remorso que estagna)... 

O que se seguiu à perguntinha nada simples foi a sua interpretação através dos caminhos mais simplórios: recebi e-mails onde, entre xingamentos menos cotados, fui chamada de fãzoca do Caetano. Na lógica dos e-mails enviados, em lugar de pensar na pergunta, melhor simplesmente calcular, maniqueisticamente, como reza a cartilha da estagnação: perguntar por que não surgiu outro movimento no Brasil com o peso do tropicalismo implica, simplesmente, acreditar nulos o BRock 80, o Mangue Beat e qualquer outro que tenha ousado aparecer após o tropicalismo. Na lógica que só enxerga uma possibilidade na pergunta, a única leitura possível era que eu estava diminuindo toda a produção musical pós-tropicalismo, por ignorância ou lealdade aos baihunos (expressão cunhada pelo Pasquim em 1972 para designar os baianos super bacanas que haviam “invadido” sua preciosa praia de Ipanema). 

Quando se fala em Caetano Veloso, tudo o que se consegue despertar em aficionados por música é muito apaixonado, seja contra ou a favor. Meu texto era muito intuitivo. E eu mantinha a perspectiva de que eu deveria investigar, perguntar, procurar, tentar entender o que eu intuía sobre a instituição tropicalismo. Eu devia saber que estava mexendo em casa de marimbondo. 

Outra coisa que eu não sabia, na época, é que um livro sobre o assunto estava sendo preparado por um jornalista. E que o livro trataria justamente do viés que escapou à leitura tati-bitati da pergunta que eu tinha feito. Se a instalação tropicalista inaugurou no Brasil o presente perpétuo, que se repete a si próprio a cada novo/velho segundo no relógio – essa hipótese é a que pretendo estudar neste livro (...), afirma o jornalista Pedro Alexandre Sanches na introdução de Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba. O livro, que era, inicialmente, o trabalho de conclusão de Pedro para o curso de jornalismo da USP, caiu na minha mão durante o Rock In Rio graças ao mesmo Matias do e-zine 1999. E, desde que comecei a lê-lo, não paro de achar diferentes caminhos para investigar as implicações daquela pergunta que fiz há cerca de dois anos. Nenhum deles, no entanto, passa pela mera simpatia para com os tropicalistas. Admiração, sim, pelos momentos em que é inegável que tenham produzido música de alta relevância, inovadora. Não pela maneira como têm rebolado ao longo de décadas para manter seu trono na música brasileira, desenhando uma curva que vai da antropofagia ao autoplágio e provoca a paralisia intelectual e criativa das crianças natimortas que sempre e sempre teimam em nascer.

Decadência Bonita do Samba trata a hipótese de um presente-contínuo como um círculo vicioso onde os ídolos tropicalistas perpetuam-se e reafirmam-se no que Pedro chama de processo corrosivo de eternização. Tudo isto é dito apenas na introdução do livro. Dali em diante, dedica-se a analisar as condições históricas do movimento tropicalista, as influências, e, individualmente, a obra de seus principais expoentes e antagonistas, estes fagocitados muitas vezes pela preponderância daqueles. É mais ou menos como disse Rogério Skylab - www.rota66.com.br/skylab -, artista carioca que rema contra a mesmice, em entrevista a Sílvio Essinger em 1999: Eles foram muito importantes, mas não sei se foi por dinheiro ou vaidade, comprometeram todo o seu passado. Eles não aprenderam a grande lição de Pelé: "você tem que parar no momento certo"

(...) a gana de uma nova geração que começara havia pouco a se instalar – e que ficaria para sempre conhecida como geração tropicalista – era justamente de sepultar a ordem vigente. Os tropicalistas, Caetano à frente, chegavam não para reatar a linha evolutiva da música popular – como ele mesmo gostou de propagar à época e, depois, para sempre - , mas para encaminhá-la a outra e diversa direção, mesmo que derrubando o que aparecesse pelo caminho. (...) instigavam apenas (se se puder ser cruel), a dança da solidão, o eterno (até então, pelo menos) conflito geracional que sempre levou (até então, pelo menos) a arte para frente e para cima. 

Mais uma citação retirada do livro de Sanches e mais uma lembrança: impossível não fazer a ponte entre este livro e as denúncias de Cláudio Tognolli na Caros Amigos em 1998. 

Abaixo, trecho de Cheirinho de Dendê, coluna que coloquei no Cucaracha Zine - www.cucaracha.com.br - à época do lançamento de Noites do Norte, CD do Caê, no ano passado:

Em 1998, Cláudio Tognolli denunciou na Caros Amigos (edição de Março) a existência de uma “máfia do dendê”. (...) A tal máfia, segundo Tognolli, seria o nada sutil controle exercido por Caetano e sua turma (que chama de “baianos que gostam de cantar na televisão”) sobre cadernos culturais brasileiros, ditando pautas e opiniões. “Quem fala muito mal deles em grande órgão de imprensa não dura”, disse Tognolli na ocasião, citando o caso de Luís Antônio Giron, musicólogo que teria sido demitido de um jornal de São Paulo porque não entrou no esquema da “máfia”. “O pagamento da Máfia do Dendê não é em dinheiro, é com uma aura de glamour e convívio.” Jornalistas com cargos executivos freqüentam as festas, as coberturas e entram na roda da “máfia”, que funcionaria como um lobby, um grupo de pressão. Esta é a história contada por Tognolli. E, se ela tiver um fundo de verdade, estamos diante de um típico caso de juízo em que são utilizados dois pesos e duas medidas. Onde há fumaça, há fogo? Então o intrépido Tognolli sentiu cheirinho de dendê queimado.

A presente coluna sobre o Decadência Bonita do Samba é uma tentativa de retomar o raciocínio que comecei com aquela pergunta sobre tropicalismo. Até agora, me sentia desestimulada a escrever sobre isso em qualquer espaço. O que mudou? O que me fez voltar ao assunto aqui, no Scream and Yell? O próprio livro do PAS; a expectativa de que Antônio Carlos Magalhães seja deposto (cassado não define a situação); a porradaria da polícia nas ruas de Salvador em cima de estudantes que se manifestavam contra ACM (vejam em www.elcabong.f2s.com).

Um passo para as mudanças é tomar conhecimento das causas da estagnação.