Café & Cigarros
[estética na prática]
por Marcelo Träsel

O grande problema é a falta de senso estético. A desumanização promovida pelo capitalismo nas atividades produtivas, com o objetivo de imprimir maior eficiência à indústria e ao comércio, terminou por limpar o design de qualquer preocupação além da praticidade - a não ser, é claro, quando as coisas precisam ser bonitas e cool, para vender, o que não implica necessariamente em beleza. 

Uma ferramenta ou residência não era apenas algo a se utilizar. Simbolizava, até há poucas décadas, aquela parte indefinível de nós mesmos a que chamamos HUMANIDADE. Um ferreiro não apenas forjava uma faca. Ele trabalhava o cabo com padrões particulares, tornando-a não apenas mais uma ferramenta, mas a SUA faca. Podia-se reconhecer a origem pelos desenhos. Para perpetuar seu nome, imprimia algo de si mesmo, colocava o amor a seu trabalho, verdadeiro carinho na faca. Nenhuma era igual à outra. O produto de sua manufatura carregava uma parte de si mesmo, e assim, seu estado de espírito no momento. 

Quando o século XX chegava a seu fim, no entanto, descobriu-se que as pessoas atrapalham os processos produtivos na linha de montagem. Máquinas são mais eficientes, pois seguem rotinas pré-estabelecidas em algoritmos. Seres humanos, por outro lado, tendem a deixar suas emoções fluírem para o que estiverem produzindo. E isto é perigoso para o sistema. A linha de montagem deve seguir imperturbável, e cada faca deve ser igual às outras. Porque tudo deve agradar a todos os consumidores, pasteuriza-se a produção. É muito caro produzir sob encomenda, dado os novos hábitos de consumo, com sua velocidade estupefaciente.

Menos é mais. Facas não devem mais ser decoradas, mas sim feitas em aço inox liso. Residências não podem mais ter a elegância neoclássica, com suas fachadas cheias de detalhes próprios de cada pedreiro, pé-direito alto, chão de madeira. Devem ser pombais em forma de caixotes de concreto, com o mínimo espaço necessário para um ser humano habitar. Bauhaus, quantas desgraças urbanas se cometeram sob tuas ordens! Nossas cidades perdem os tons pastéis aconchegantes para ganhar o vidro, o metal e as pastilhas brancas. Vivemos em hospitais - ou seriam banheiros? - assépticos e nus.

Toda humanidade foi retirada de nossos produtos. Um reflexo da automação. Não a simples substituição de pessoas por máquinas, mas a transformação das pessoas em máquinas. Vêm à mente de imediato os manuais de telemarketing e para os gerentes de McDonald's. Algoritmos para seres humanos. Perdeu-se o objetivo estético paralelo ao trabalho. Não se trabalha mais tendo em vista colocar algo de si no mundo. Trabalha-se por que nos foi ordenado. 

Não admira que as pessoas percam os valores humanistas, habitando em cidades cada vez mais desumanas. O valor estético presente nos produtos do trabalho lembrava constantemente a quem os utilizasse de sua própria humanidade. Era possível reconhecer-se no outro e, assim, ser solidário. Ambientes despidos de preocupação estética dificilmente estimulam a tolerência, o raciocínio, a fraternidade. Coincidência ou não, valores que fazem muita falta às sociedades contemporâneas.
 

Marcelo Träsel
Ficção, Jornalismo e COLunismo:
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