"Valsa Negra" de Patrícia Melo
(Companhia das Letras, 244 páginas)
por Marcelo Silva Costa
03/09/2003

"Possuo um talento especial para imaginar buracos, todos bem negros, profundos, voraginosos, e teria mesmo descrito para Rachel uma variedade enorme de grotas e cavernas, subterrâneos e frinchas, se minha vontade de dizer algo não fosse sempre engolfada por um sentimento profundo de desânimo".

Estamos na página 10 e nosso companheiro narrador já entrega parte importante do seu mundo. Ele é um maestro conceituado, porém, em dúvida constante sobre a fidelidade de sua parceira, uma violinista trinta anos mais jovem. A relação entre este casal constrói "Valsa Negra", quinto romance da carreira curta, porém, altamente recomendada, da escritora Patrícia Melo. 

Após uma belíssima estréia com "Acqua Toffana" (1994), livro que interligava duas histórias cheias de sangue, sexo, violência e veneno, Patrícia conquistou a mídia e o público com o personagem Máiquel de "O Matador" (1995), livro que ganhou uma boa versão cinematográfica com roteiro assinado por nada mais nada menos que Rubem Fonseca. O escritor foi influência direta sobre "O Elogio da Mentira" (1998), livro mais denso, mais comentado e mais difícil da escritora. Em seguida, foi a vez de Reizinho no absurdamente genial "Inferno" (2000). 

Em "Valsa Negra", por sua vez, Patrícia Melo mergulha com olhos abertos no profundo mundo dos desajustados do amor e nos leva a vasculhar todo o oculto daqueles que se entregam a paixão. Nada melhor do que a epígrafe do livro, um verso de Catulo, para resumir: "O ódio é indistinguível do amor". É claro que há diferenças, e cabe ao leitor entender o universo surreal dos apaixonados da maneira que melhor lhe convir, mas que ambos os sentimentos se confundem quando absurdamente absorvidos tanto Catulo quanto Patrícia tem razão. 

Em suas páginas iremos conhecer a alma de um maestro atormentado. A certa altura ele diz: "A verdade é que não se pode pensar em paz quando se casa com uma mulher trinta anos mais jovem". Se a idade não bastasse, nosso querido Maestro ainda tem que enfrentar o problema da religião. "Você é um tipo bem subequatorial, ela disse (...) Às vezes me perguntava se um dia Marie me perdoaria pelo fato de eu não ser judeu", pensa. 

Estas duas diferenças básicas poderiam muito bem ser deixadas de lado se nosso narrador não sofresse de uma doença, uma doença física, como o câncer. A mesma doença que havia acometido Otelo, o Mouro de Veneza. E José, da ópera Carmen. E Freud. "A vida da mulher dele era um inferno", diz o analista do maestro, completando: "Sabia que Frank Sinatra certa vez interrompeu um show para telefonar para Ava Gardner?".

É esse universo que o leitor encontrará em "Valsa Negra”, um livro pesado, denso e tenso. Poeticamente palpável e dolorosamente conhecível. Desde sua capa, violentamente negra, até sua última página, tristemente previsível, "Valsa Negra" transpira boa literatura, com ritmo vertiginoso, palavrões e muita realidade.

Patrícia traduz a perfeição os detalhes de uma orquestra. As passagens de ensaios, apresentações ou mesmo os comentários sobre obras, artistas e o "mundinho" dos músicos clássicos compõe um perfeito fundo para uma obra decididamente cruel. E apaixonada. E irônica. Ela chega a fazer rir quando o maestro, ranzinza que só ele, diz, após uma dissertação de uma amiga sobre um quadro, "que ninguém quer falar de futebol com um maestro".  

O personagem Marie, colocado em segunda posição pela narrativa, tem seus atrativos. É provocativo, apaixonado e, também, cruel. Joga o jogo do amor e da sedução sem conhecer os limites do parceiro. Mas quem conhece os limites do parceiro? Quem confia? Quem acredita? O amor é uma doença? Quem ama e quem odeia? Não é a mesmíssima coisa? "Valsa Negra" além de um excelente romance, pode até soar revelador. Tudo depende de como você ama, caro leitor. E como você ama. 

"Não eram nem dez horas da manhã quando deixei o apartamento. A cidade estava mais cinza, eu não me sentia disposto. Entrei no carro, olhei para o céu. Seria um dia ruim".  


TRECHO DO LIVRO

"Seria uma boa solução quebrar as pernas, pensei, quando encontrei Rachel, minha vizinha setuagenária, chegando do hospital, com a perna imobilizada. Ajudei o porteiro a colocar a cadeira de rodas no elevador. Seria ótimo rolar escada abaixo e despedaçar tíbias e fêmures, ficar em casa, não ir para a orquestra resolver aporrinhações, não falar no telefone com tipos como o Felipe Hojas, aquele maestro chato, exibicionista, que vive com dor nas costas, cancelando concertos a torto e a direito, não responder aos cinqüenta e-mails que caem na minha caixa postal cada vez que abro o computador, não ter aquela foto de Brahms me olhando daquela maneira, não reger mais em Palermo, não me preocupar com o gaitista-de-foles para a peça de Maxwell Davies, não ver contratos de spallas, não pensar nem um minuto sequer no Réquiem de Verdi, nas quatro peças sacras, não pensar especificamente naquela Ave-Maria, não subir no palco, não me irritar, não gritar com os músicos, não ensaiar a Sétima sinfonia de Mahler, não fazer nada disso, ficar em casa, disponível, atento, concentrado em Marie.

Rachel pediu-me que a levasse até seu apartamento, no segundo andar. Não posso me demorar, pensei. Marie já saíra do banho, era rápida, mulheres jovens não gastam muito tempo com cosméticos. "Não entendo como alguém consegue botar tanta porcaria na cara. O nécessaire de uma mulher, depois dos quarenta, é um verdadeiro laboratório de armas químicas", ela dissera, certa vez.

Entramos no elevador, e logo que a porta se fechou, Rachel aproveitou minha disponibilidade para reclamar desses "funcionários cretinos que trabalham no nosso prédio", sobretudo daquele "patife da portaria", que quase lhe quebrara a outra perna na hora de retirá-la do táxi. Estava disposta, Rachel.

"Notou que não é gesso?", perguntou, exibindo a estrutura plástica que envolvia sua perna.
Escutei-a contar que, naquela mesma manhã, quando andava pelas ruas do nosso bairro, fora engolida por um buraco. "Esses prefeitos de merda agora só pensam nos pobres. A classe média está jogada às traças. Consegue imaginar um buraco, enorme, no meio da rua?"

Possuo um talento especial para imaginar buracos, todos bem negros, profundos, voraginosos, e teria mesmo descrito para Rachel uma variedade enorme de grotas e cavernas, subterrâneos e frinchas, se minha vontade de dizer algo não fosse sempre engolfada por um sentimento profundo de desânimo. Nos últimos tempos, eu andava assim. No ensaio da Sétima de Mahler, no dia anterior, ao ver meus músicos tocando sem energia, pensei em falar que Mahler não era caipira como Bruckner. Bruckner é coito interrupto, pensei em dizer. Mas Mahler é potente na música, Mahler se propõe e realiza, desenvolve, chega lá. Eu poderia ter expressado minhas restrições, não se ensaia Mahler, toca-se Mahler, com vigor, respeitando a dinâmica, ou então abandona-se Mahler e pronto, é o que eu deveria ter dito, meus músicos teriam compreendido perfeitamente, teriam tocado melhor, mas, em vez disso, perdi as estribeiras e gritei com a orquestra e larguei o ensaio. Mas nos últimos tempos eu me exaltava ou simplesmente ficava em silêncio, sem força para dizer nada, sem vontade, como naquela ocasião, com a vizinha.

Rachel deu-me a chave do apartamento, entramos. Fui novamente atingido por aquele odor, uma mistura de poeira, álcool e caldo de carne. "Não sinto nada", dizia Marie, toda vez que eu lhe chamava a atenção para aquele fedor. Mas Marie era jovem e fumava maconha, e maconheiros jamais sentem coisa alguma. Mas eu sentia. Em matéria de coisas podres, sempre fui especialista. Se a morte possuía um odor, era aquele. De manhã, quando os moradores abriam as janelas e saíam para passear com seus cachorros, quando os moribundos eram levados para tomar banho de sol, por suas enfermeiras, aquele odor se espalhava pelo edifício de tal forma, que eu era obrigado a passar cânfora ao redor das narinas.

A verdade é que não fora uma boa idéia nos mudarmos para aquele apartamento, fora burrice aceitar o presente de Henri, meu generoso sogro. "Cabem seus pianos", ele dissera, logo que Marie voltou de Israel e eu abandonei Teresa e nossa filha adolescente, uma confusão dos diabos, enfiei meus pianos ali e, quando me dei conta, estava casado com Marie. Hoje me pergunto se não foi aquele cheiro de morte a causa da nossa desgraça. Se músicas barulhentas, primitivas, se filmes cheios de revólveres e vingança podem envenenar nossas condutas e destinos, se vemos essas porcarias e saímos por aí matando quinze pessoas no McDonald's, por que odores como aquele não poderiam provocar desequilíbrios semelhantes? Lembro que, logo que nos mudamos para aquele apartamento, eu perguntava aos vizinhos e funcionários do prédio se eles sentiam aquele cheiro. Não sentiam nada. É incrível como as pessoas perderam o olfato.

O fedor na casa de Rachel era ainda pior, superava em muito o das ruas e do hall, havia ali também naftalina, que me deixava totalmente nauseado. Rachel não permitiu que eu partisse sem antes visitar o escritório do marido falecido, cheio de móveis escuros, trastes, bibelôs. Por que juntar tanta porcaria? "A moringa", ela gritou. Retirei da estante a peça de cerâmica, levei-a para a sala. Rachel disse que sempre quisera me mostrar aquilo. "Não é bonita? É do Eliseo Visconti. Fez isso para os camarins do Municipal do Rio." Ouvi uma história longa sobre Eliseo e a arte aplicável no Brasil, e depois fui obrigado a prestar atenção na sua coleção de arte pré-colombiana, no seu quadro veneziano do século XVIII, e também no castiçal que enfeitava a mesa de jantar, "isso é prata Sheffield antes de virar Silver Plate", ela disse, como se eu tivesse alguma idéia do que fosse prata Sheffield ou Silver Plate. Esse é o problema de ser maestro. As pessoas sempre vêm com esse tipo de conversa. Ninguém quer falar sobre futebol com maestro. Saí indisposto do apartamento, levando a moringa de Visconti de presente, "isso é tão inútil aqui", ela dissera, "vai ficar bonito no seu camarim".

Seria mesmo ótimo quebrar as pernas, pensei, descendo as escadas. Para pessoas como Rachel, solitárias, e também para os fodidos em geral, ficar doente ou sofrer um acidente qualquer é uma maneira de ganhar visibilidade. Meus funcionários no teatro, porteiros, faxineiras, seguranças, todos eles adoravam contar como foram suas consultas médicas, o que os doutores disseram a respeito de seus fígados podres. Você pode não ser absolutamente nada, mas se tem um fígado podre, já é alguma coisa. Só você tem. É o seu fígado podre, a sua perna quebrada, a sua alergia incurável. Cair no buraco talvez tenha sido uma das coisas mais interessantes nesse período da vida de Rachel. Seus olhinhos azuis pareciam ainda mais vivos quando ela pronunciava a palavra fratura. Chegou a dizer que "quebrar a perna não doía nada" e que o ortopedista do hospital Albert Einstein era "a cara do Robert Redford".

Para mim, no entanto, quebrar as pernas seria o pretexto ideal para pôr em prática meus planos em relação a Marie. Viajar menos, cancelar os concertos de Ottawa e Palermo, não trabalhar e ficar em casa, observar minha mulher, checar, vigiar seus passos. Manter-me alerta e evitar a catástrofe. É assim que age um homem de verdade.

Caminhei até a esquina, as ruas de Higienópolis estavam cada vez mais cheias de merda de cachorro. Entrei no carro, liguei o rádio, procurei noticiários. Nenhuma novidade de Israel. Já não falavam sobre o conflito, cansaram. Não esperei nem meia hora, e Marie saiu do prédio. Botas, casaco de couro, o violino a tiracolo. Quem foi que disse que o diabo cavalga sobre um arco de violino? Estava ali, o demônio, entrando num táxi. Lembrei do dia em que ela enfiou no meu bolso um poema que dizia mais ou menos o seguinte: "Quero você, tenho medo de você, espero você, enfim, estou fodida e radiante, mais fodida que radiante, e vice-versa". Fiquei totalmente entusiasmado por aquilo. No fundo, pensei, troquei minha vida enfadonha, ao lado de Teresa, por um punhado de incerteza e angústia, ao lado de Marie. Estar com ela era ter, no mesmo pacote, coisas muito boas e coisas muito ruins. Mais ruins do que boas, essa era a verdade. Saí do carro e voltei para o nosso apartamento. Eu estava decidido, queria descobrir de uma vez por todas o que estava acontecendo".