'Origem', de Thomas Bernhard
por Jonas Lopes
Gymnopedies
16/06/2006


A infância é aquele período da vida onde tudo são flores e alegrias. Lá estão as principais descobertas, as quebras de barreiras, as primeiras paixões, as brincadeiras, os amigos, os aniversários com vela e balão, a presença constante de uma família amorosa, a falta de preocupação com emprego e dinheiro, a permitida irresponsabilidade. É, em suma, a época que sonhamos diariamente em voltar. Certo?

Não para Thomas Bernhard. Em Origem (Companhia das Letras, 501 páginas, tradução de Sergio Tellaroli) o grande escritor austríaco explora uma infância que pouco teve de colorida: a dele próprio. Origem compila cinco relatos autobiográficos escritos entre 1975 e 1982. Nada de balões, pirulitos e paixões adolescentes por uma coleguinha ruiva, e sim uma juventude repleta de humilhações, violência, desapontamento, desentendimentos e desagregação familiar, suicídios, nazismo, guerra, bombardeios, repressão escolar e religiosa, violência suburbana, tuberculose, hospitais e sanatórios.

O livro é uma espécie de preâmbulo das principais obras de ficção do autor, como Extinção, Árvores Abatidas e a obra-prima O Náufrago. Já estão presentes a sua misantropia, o niilismo e o tom amargo e profundamente pessimista, sem qualquer espaço para esperanças ou condescendências. Também aqui já vemos seu estilo todo particular: não há mudanças de parágrafo. São quinhentas páginas em que só há novos parágrafos quando começa algum dos cinco relatos. O parágrafo único não é um mero artifício estilístico. A prosa de Bernhard não poderia ser diferente, pois o fluxo narrativo é tão selvagem, tão intenso e profícuo, que simplesmente não sobra tempo para pausas. Bernhard é um boxeador literário impiedoso, e o efeito dos seus golpes não afasta ou derruba os adversários/leitores; aproxima-os e vicia-os.

E para aqueles que insistem em separar autor de obra, Origem dá provas do contrário. Talvez seja simplista, mas é inevitável relacionar o calvário que foi a infância de Bernhard com o seu ceticismo e amargura posteriores. Houve, em algum ponto, uma espécie de ruptura com a esperança. Tanto é que em Uma Criança - que, embora tenha sido o último dos cinco relatos a ser escrito, é o que traz as lembranças mais antigas (a edição nacional privilegia a ordem cronológica) -, o tom é um pouco mais leve que o dos outros relatos. A vida do pequeno Thomas já era um inferno, porém a ótica ainda carrega a ingenuidade e aquela incompreensão inata da primeira infância.

Estava tudo errado desde o começo. Thomas Bernhard nasceu na verdade na Holanda, porque sua mãe, austríaca, fugiu da vergonha de ter um filho de um vagabundo e viciado em jogo que não quis assumir a criança (Bernhard nunca conheceu o pai). O bebê passou algum tempo mantido em barcos de pesca no porto de Rotterdam, onde crianças eram deixadas pelas mães que precisavam trabalhar durante o dia. A relação do futuro escritor com a mãe era problemática. Ela o acusava de ter estragado sua vida, e não raro o chamava de "a mais repulsiva das crianças". Os dois só vieram a se entender anos depois, quando Thomas, no fim da adolescência, teve um problema sério no pulmão. Tarde demais, pois ela logo morreu de câncer e eles não tiveram tempo de consertar todas as desavenças.

Quem realmente criou Bernhard, de volta à Áustria, foi o avô, a pessoa a quem mais amou. O velho escritor e filósofo foi a sua grande inspiração humanística. Era, para começar, anarquista e um cético incorrigível. Desde cedo incutiu o neto a desprezar instituições como a escola (segundo ele, todos os professores são ignorantes e repressores) e a igreja ("A Igreja Católica era para ele um movimento de massas bastante vulgar, nada mais do que uma associação para o emburrecimento e a exploração dos povos, visando a coleta permanente da maior fortuna concebível e amealhável"). Ensinou também a importância do desenvolvimento intelectual e artístico - Bernhard estudou clarineta, violino e canto, por influência dele.

Por outro lado, a presença daquele senhor literato, genioso e sempre crítico era sufocante para a família, que buscava agradá-lo e nem sempre conseguia. O próprio neto sofria com a presença de um homem tão inteligente. O avô, contudo, nunca atingiu a glória literária que esperava, e viria a morrer antes de concluir o que chamava de "sua obra-prima", um romance de milhares de páginas.

Bernhard, considerado pela mãe uma criança-problema (ele urinava na cama, e ela pendurava os lençóis para que todos soubessem), é mandado para um internato de cunho nazista em Salzburgo, em plena Segunda Guerra. Massacrado pela pregação hitlerista, o jovem busca refúgio no estudo do violino em um quarto fechado. É a única forma de fugir dos bombardeios que destroem a cidade e dos suicídios de colegas, um fato freqüente em Salzburgo (quem leu O Náufrago sabe do ódio do autor pela cidade de Mozart). A cidade tem uma das mais altas taxas de suicídios do planeta. Bernhard sentia vergonha por nunca ter tido coragem de tirar a vida como os colegas.

Quando termina a guerra, o internato é ocupado pela igreja. Pouco muda, "a diferença para mim, de início, estava apenas na troca do retrato de Hitler pela cruz católica". Bernhard volta a morar com pais e toma uma decisão radical: decide abandonar os estudos sem completar o ginásio e, no intuito de "tomar a direção oposta", emprega-se como aprendiz na mercearia de um conjunto habitacional pobre. E é ali, vendendo fiado para bêbados, que ele finalmente se sente feliz.

A felicidade não dura. Após uma gripe mal cuidada, Bernhard contrai uma doença gravíssima no pulmão, por pouco não morre e passa meses internado na ala de cancerosos de um hospital. É nesse período que retoma o contato com a mãe. Em compensação, ela, e também o avô, morrem nessa época. Thomas é enviado a um sanatório, sob suspeita de tuberculose, que não se confirma. Assim que deixa o sanatório, adoece novamente e, agora sim, contrai tuberculose. Qual um novo Hans Castorp, descobre na doença um aliado e floresce intelectualmente. Apaixona-se por música erudita e, agora livre da pressão do avô, fascina-se pela literatura através de Os Demônios, de Dostoiévski:

"Anestesiei-me, dissolvi-me por algum tempo nos 'Demônios'. Quando voltei, não quis ler mais nada por algum tempo, porque tinha certeza de que mergulharia em enorme decepção, em um terrível abismo. Recusei-me durante semanas a qualquer leitura. A enormidade dos 'Demônios' me fortalecera, mostrara um caminho, me dissera que eu estava no caminho certo: para fora. Tinha sido afetado por uma literatura selvagem e grande, e dela emergi eu próprio como herói".

Thomas estava, agora, pronto para se tornar Thomas Bernhard.

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