"Kurt Cobain - Fragmentos de Uma Autobiografia", de Marcelo Orozco

por Marcelo Costa
29/05/2002
maccosta@hotmail.com


Kurt Cobain foi o grande nome da música popular mundial da década de 90. Porém, é uma tremenda bobagem resumir a importância do cara em apenas dez anos, certo. Kurt surgiu como o último sopro de criatividade de um gênero que começava a se importar mais com a caixa registradora do que com qualidade de canções. O choque da posição anti-establishment de Kurt com o sucesso mundial alcançado pelo Nirvana mexeu com o sentimento do músico. Por outro lado, a saída suicida do homem mexeu com o mundo. Isso é história, não é só uma década.

Corte para 2002.

Oito anos se passaram desde a morte de Kurt Cobain, mas a banda continua sendo objeto de discussão. De capas de revistas, passando por material não lançado arquivado na gravadora até discussões de quem será o próximo Nirvana, o assunto parece render. Mas o que mais chama a atenção é a quantidade de jovens com camisetas da banda. Jovens que deviam ter de 8 a 12 anos quando Kurt abandonou este planeta azul. Jovens que vêem na música e na figura de Kurt, uma resposta, independente de qual seja a pergunta.

Kurt Cobain - Fragmentos de Uma Autobiografia, do jornalista Marcelo Orozco, vasculha o arquivo musical do líder do Nirvana, destacando emoções, preenchendo vácuos, clareando a escuridão. E parece ter sido escrito sobre encomenda para este público que jogava pelada na rua enquanto Kurt destruía guitarras em palcos. É claro que mesmo aqueles que sabem tudo do Nirvana irão encontrar no livro muita novidade, com destaque para todas as letras de Cobain, até as inéditas. Mas a grande sacada de Fragmentos de Uma Autobiografia é trazer um leque de informações sobre influências e gostos musicais que moldaram o som Nirvana para aqueles que, provavelmente, pegaram apenas o sucesso "mainstream" da banda. Assim, se um moleque de 14 anos, fã de Nirvana, ler sobre Pixies na página 48 ou sobre Bob Dylan e o White Album dos Beatles na página 104, e querer conhecer, a causa rock está mais do que defendida. Sem contar, claro, que as estantes brasileiras, tão carentes de bons livros sobre rock, ganham um exemplar especial e excelente.

Especial porque mais do que um relato analítico sobre as letras de Cobain, Fragmentos também é emblema da paixão de um jornalista sobre esse negócio chamado rock and roll. Numa votação que pedia os melhores álbuns da década de 90 realizada por este mesmo site no final de 2000, Marcelo Orozco tascava, ali, nos três primeiros lugares, os três álbuns do Nirvana (Bleach só não entrou porque era de 1989). E excelente porque o texto de Orozco é totalmente rock and roll, herança dos nove anos em que o jornalista foi editor de esportes do jornal Notícias Populares (Que Deus o Leia).

O S&Y bateu um papo com Marcelo Orozco, que comparou Kurt Cobain a Maradona, se declarou fã de Wilco e confessou que não morre de amores por Courtney Love. Confira. 

Quando surgiu a idéia do livro e porque Kurt Cobain?
A idéia de fazer o livro como ele é veio da Editora Conrad em julho do ano passado. O Kurt Cobain foi um daqueles compositores que expressaram tanto sua vida nas músicas que permite apontar o que há de biográfico nessa obra. Essa relação sempre me interessou em tudo que li sobre outros artistas. Especificamente, tem um livro sobre o Neil Young escrito por Johnny Rogan que vai por esse caminho que eu segui com o Cobain. E, apesar do impacto que o Nirvana teve, praticamente todas as referências escritas ainda eram de fora, numa combinação de preços salgados e entrave para quem ainda não deslancha em inglês.

Do inicio das pesquisas até a entrega do trabalho na editora foi quanto tempo?
Chegou a estafar ou foi sossegado?

A minha parte (reler e separar o material que eu já tinha, levantar mais coisas, escrever o texto e traduzir as letras) levou seis meses. Juntando com a parte de edição final do livro, deu um total de nove meses. O livro mesmo não chegou a estafar, apesar daquele receio de sempre de não saber se está bom ou não. Estresses vieram de acontecimentos paralelos, não do livro.

Houve algum problema com liberação do material, letras ou coisa assim?
Você chegou a conversar com alguém próximo a banda?

A exigência da editora que administra os direitos sobre as músicas foi de que publicássemos a quem pertencem os copyrights e isso foi feito em uma página específica para isso. Quanto à banda, cheguei a de pulinho em pulinho a entrar em contato com o manager do Krist Novoselic para assuntos de Nirvana e enviei umas perguntas, mas não vieram respostas.

Algo te surpreendeu enquanto você redigia, alguma letra que você não tinha percebido antes, algo informação que você desconhecia?
Às vezes, concentrar mais num sentido figurado dava uma visão mais clara que eu nunca tinha me dado ao trabalho de desenvolver. Mas surpresa, surpresa, de sair gritando "eureka!", acho que nenhuma. Rolaram coisas legais, como saber que o Kurt usou um trecho de um texto do programa Saturday Night Live na música I Hate Myself and I Want to Die (música que faz parte do álbum The Beavis and Butt-Head Experience lançado em 1993).

Essa foi uma das canções que mais me surpreendeu no livro. Eu não tinha o CD (comprei só agora) e não lembro de ter ouvido a música na época, mas o título sempre me levou a achar que fosse uma letra pra baixo, mas ela carrega um cinismo danado, certo.
É, essa música não é o que o título sugere.

Qual o melhor material que você leu sobre o Nirvana, como fonte para o seu livro?
Entrevistas do Kurt em geral foram fundamentais. As biografias Come As You Are e Heavier Than Heaven são ótimas, estabelecem um perfil psicológico do Cobain que me ajudou muito e têm informações soltas sobre as músicas. De certa forma, dei uma organização meio enciclopédica em um monte de informação que estava espalhada.

E também teve bastante coisa que você pesquisou na Internet, de vários sites. Como foi peneirar os melhores sites que falam da banda e chegar nestes que estão no fim do livro?
Caçando de link em link. Uns eram muito bons, outros eram apenas ok, outros muitos que não botei no livro não passavam de iniciativas fraquinhas de boas almas bem intencionadas. Acho que, de todos, o que me foi mais precioso foi o Zzubevol, que tem um levantamento absurdo de quando cada música foi tocada, em shows e estúdio.

Qual a sua música do Nirvana preferida e por que?
Uma só é fogo. Da parte explosiva, acho Scentless Apprentice espetacular pelo instrumental e pelos vocais. Mas Smells Like Teen Spirit, por tudo, é um páreo muito duro pra não citar. Até hoje eu ouço com prazer, apesar de correr o risco da "síndrome de Stairway to Heaven" (boa música que acaba empapuçando de tanto que é repetida). Da parte calma, All Apologies é tocante em tudo.

E do material extra discos oficiais, o que você recomendaria alguém ouvir? Eu estava ouvindo Sappy e é uma grande canção. (Sappy está no álbum No Alternative como faixa surpresa)
Sappy eu gosto muito. Das não lançadas, acho que a que mais gosto e queria ouvir em qualidade decente é Token Eastern Song (Junkyard).

Nas informações sobre você no livro, consta que você foi músico amador. Essa experiência foi muito útil no livro, já que você analisa a estrutura de várias canções e foi bem legal para sacar o "erro" em Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle.
Você chegou a ter banda? Como foi a história?

Me exercitei em dois trios. Um foi o Refugs, era mais para garageira, tinha duas guitarras e bateria, sem baixo. Existiu entre 91 e 92. O Nirvana me mostrou que o que eu estava fazendo era uma droga (risos). Outro foi um trio de blues com dois velhos amigões, o Easy Blues, duas guitarras e violão. Esse durou mais, de 89 a 97, e a gente parou porque a vida real passou a tomar tempo e paciência demais. Mas, como você disse, essas experiências foram úteis na hora de escrever sobre as músicas do Nirvana.

Você os viu ao vivo no Hollywood Rock em 93, certo? Como foi essa experiência?
Eu sou provável minoria, mas adorei. Foi completamente imprevisível. Não foi muito profissional, nada estava igual ao disco, o Cobain estava morrendo em pé. Mas foi diferente. E a parte final, quando eles trocaram de instrumentos e só tocavam covers fuleiras, foi espetacular. Ninguém faz essas coisas em estádio porque "é feio". Justamente por isso eu gostei.

Qual das sensações que letra/música/atos do Cobain que você mais admirou no decorrer do livro?
Eu admiro isso de colocar coisas pra fora na música, de se expressar e botar nisso uma energia enorme. Sendo real para quem faz, a música também é real para quem ouve.

Muitos acusam Courtney Love de ser o pivo auto-destrutivo de Kurt. No livro, você apenas conta sobre Courtney sem preocupar-se com os detratores. Como você vê Courtney, em separado, e Courtney na vida de Kurt?
Pessoalmente não morro de amores por Courtney Love. Mas procurei ser o mais imparcial possível. Não queria entrar na linha "ela é uma vilã". E, no fim das contas, foi a pessoa por quem o Cobain se apaixonou e com quem viveu em seus anos de auge. Então, foi uma escolha dele e ele viu razões que talvez ninguém mais entenda. Pode ser que ela tenha contribuído para determinadas coisas que fizeram Kurt perder o rumo de vez. Mas pode ser que ele tivesse se encarregado de perder o rumo por conta própria se ela não tivesse participado da vida dele. Para mim, a Courtney e o Hole alcançaram mais destaque porque ela se casou com Cobain. Não fosse isso, o Hole seria uma banda alternativa normal, nem ótima nem ruim, mas que gravaria uns discos e talvez sumisse rápido.

Você esperava a repercussão bacana que o livro está tendo?
Foi uma surpresa legal. Eu achava que ele ia interessar a quem gosta de Nirvana, mas que ia ficar restrito a esse circuito. Acabou sendo bem falado, mais do que eu esperava quando fiz.

Você tem conversado com o público, tem recebido comentários?
No que rolou de lançamento em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, deu pra conversar com o pessoal. E o que mais gostei foi que a esmagadora maioria é de garotada, entre 13 e 18. Eles são curiosos a respeito de muita coisa sobre o Nirvana e não viram na época em que estava acontecendo. Então fico satisfeito de repassar isso, informação que eles queriam receber nesse começo de paixão pela banda e meio que não tinham onde pegar.

Agora, conta aqui pra gente. Você que esmiuçou o interior da banda, ouvindo faixas demo, prestando atenção as letras e lendo muito material sobre eles, pode dizer melhor do que ninguém: eles eram bons mesmo? Haverá outro Nirvana?
Bons, eram. Bons mesmo. Eram espontâneos, competentes, simples, pesados, melodiosos, atrapalhados, expostos, irônicos, dedicados, com voz viva. Abrangeram muita coisa ao mesmo tempo. Se haverá outro Nirvana? Será completamente inesperado e talvez não se pareça muito com Nirvana na superfície, pelo menos. Vai ter ingredientes essenciais básicos, mas acho que a forma vai ser muito diferente. Assim como o Nirvana foi inesperado.

Alguém na cena atual teria punch pra ser o próximo Nirvana? E o que você anda ouvindo?
Na cena atual, não vejo. Mas talvez eu esteja velho, rabugento e desencantado demais. Do que pipoca aí, eu adoro o Wilco, mas sei que não há possibilidade de um alcance maior e mais abrangente como o do Nirvana. É apenas música muito bem feita. Da leva mais recente, gostei do White Stripes, mas também é de alcance restrito e é mais derivativo (não que isso seja uma coisa ruim; mas a presença do passado é mais nítida e "citável" que, digamos, no Nirvana). No geral, apesar de ainda ouvir rock, sigo fuçando pelos meandros do jazz e descobrindo quão falso era o rótulo de música esnobe e modorrenta para sala de jantar com lustre de cristal. Escondidos por esse clichê, há muitos sons feitos com tanta paixão, espontaneidade e energia quanto no melhor rock. Foi feito há muito tempo, mas pra mim é novo.

Você foi editor de esportes de um dos jornais mais famosos e bacanas do País, o Noticiais Populares, durante nove anos (1991 a 2000). Em 1998 você escreveu um texto para a revista da 89FM em que dizia que futebol também era rock and roll exemplificando Garrincha como Elvis Presley e Pelé como Beatles. Nessa escala, quem o Nirvana foi no futebol?

Cáspite!... Vou colocar o Nirvana como o Maradona. Pelo talento e pela personalidade complexa. E, claro, vale lembrar que tanto o Maradona quanto o Cobain são canhotos...

Livro lançado, tarefa cumprida. Se te pedissem um volume 2, na mesma linha.
Quem seria "fragmentado"?

Não sei. Eu gosto de outros "fragmentáveis". Mas ou é alguém que já foi estudado à exaustão como o Lennon, então não há muito o que acrescentar. Ou é alguém com quem não tenho a mesma imersão nem acompanhei disco a disco com tudo acontecendo, sem a história estar completa ou organizada, como foi no caso do Nirvana e do Cobain.