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"Lolita", Vladimir Nabokov

por Rodrigo Damasceno
Capas das edições, por ordem: Brasil, Inglaterra, EUA, França e Alemanha
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20/10/2005


Dolores Haze é uma respeitável e ordinária norte-americana. Entre os fatos mais marcantes de sua vida estão um tórrido relacionamento amoroso que manteve com seu padastro, iniciado em 1947 (quando ela tinha 12 anos) e a criação de um marcante personagem chamado Vladimir Nabokov, escritor norte-americano de origem russa, intelectual renomado e grande caçador e colecionador de borboletas. Essa é uma distorção que pode soar como realidade para muitos. Lolita (o carinhoso apelido dado a Dolores), a personagem ninfeta do romance homônimo de Vladimir Nabokov, além de eclipsar em parte o abrangente talento de seu criador, tem uma biografia marcada por uma característica cada vez mais comum: a personalidade em desenvolvimento afetada cada vez mais cedo pela banalização da sexualidade. Mais um dos casos em que personagem sobrepõe-se a escritor.

Lançado há exatos 50 anos, Lolita levantou polêmicas (vários editores negaram-se a lançar o livro, proibições foram pedidas), recebeu desprezo e processos, acendeu paixões e defesas e engendrou diversos debates a respeito do seu verdadeiro significado. Onde uns viam uma história de amor, outros enxergavam uma crítica e cínica visão européia sobre a cultura do Novo Mundo. Entre as conclusões a respeito do romance, aquela que mais irritava e machucava Nabokov era a que apontava um poderoso anti-americanismo no texto. Para além dessas dúvidas, repousam intactas algumas certezas: Lolita é um romance estilisticamente impecável, marcado por personagens bem elaborados e um enredo hipnótico.

Ao optar pela narração em primeira pessoa feita por um pedófilo de meia-idade, Nabokov demonstrou coragem ao refutar a possibilidade de manter um distanciamento mais óbvio através de uma narrativa impessoal. Humbert Humbert, o europeu de origem aristocrática e claramente perturbado que narra a sua história ao lado de Lolita, tece uma prosa referencial, irônica e mordaz. Não poupa absolutamente nada. Apresenta-se como uma pessoa inteligente, culta e educada (embora a aura da sua intolerância seja clara desde o princípio). O jogo criado por Nabokov para que entendamos e tenhamos uma opinião a respeito de Humbert Humbert (ele sim o personagem principal dessa trama) surge no momento em que o leitor percebe que certo alvo do olhar dele raramente é alvejado com a força direcionada aos outros: a auto-crítica de Humbert não convence. Dolores, tão bem descrita por Nabokov quanto o seu padrasto-amante, é uma jovem indolente e mal-criada, negligenciada pela mãe e com uma crueldade marcada pela capacidade de gerar tanto repúdia quanto atração.

Após um casamento mal-fadado na Europa, atividades acadêmicas medíocres e uma busca incessante por momentos a sós com jovens meninas, Humbert acaba se mundando para os EUA, onde, após mais atividades acadêmicas medíocres e outras incansáveis buscas por momentos a sós com jovens meninas, conhece Lolita. E se apaixona. Sente por ela o mesmo desejo que sentira apenas uma vez na vida, ainda na Europa e ainda criança, por uma outra jovem, e que jamais fora consumado. Segundo Humbert, que faz questão de esmagar a psicologia pseudo-freudiana, toda a sua lascívia pouco comum deriva desse desejo interrompido na infância.

Pouco tempo após esse encontro e após decisões radicais tomadas por Humbert para estar sempre perto da sua "namorada de doze anos" (optando por casar-se com a mãe de Dolores), devido a irônicas (e, confessemos entre risos abafados e pudores machucados) até mesmo engraçadas situações arquitetadas à revelia de Humbert, Lolita termina por ficar sob a guarda dele e de mais ninguém. Cruzam os EUA, amam-se, desconfiam, brigam e, por fim, perdem-se um do outro. A narrativa veloz recusa limitar-se ou simplesmente pelo cinismo ou apenas pela paixão, transitando com facilidade entre os dois terrenos.

O próprio Nabokov afirma que é uma infantilidade tentar se informar a respeito de um país, de uma classe social ou do próprio autor a partir de uma obra de ficção. Mas, negando-se a aceitar essa afirmação absolutamente verdadeira, pode-se dizer que com Lolita notamos mais claramente a respeito de modificações consideráveis em certos países e classe sociais (tornadas realidade com um belo empurrão da cultura massificada e vulgar) e, sobretudo, nos informamos a respeito de Nabokov, escritor esmerado, estilista obssessivo e grande conhecedor dos sofrimentos e prazeres humanos.

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