Entrevista - Márcio Américo Alves
por Leonardo Vinhas
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05/11/2006

É difícil, muito difícil, escrever uma introdução sobre quem dispensa palavras. Numa entrevista para a revista Bizz, Humberto Gessinger classificou os gênios em "verbais" e "pré-verbais". Os primeiros seriam aqueles sobre quem podemos falar, caras criativos, mas cuja arte não desafia a compreensão - gente como Roger Waters, segundo ele, enquanto Syd Barret, Pelé e Jaco Pastorius seriam "pré-verbais", ou seja, pessoas sobre quem não se pode falar nada, principalmente para tentar explicá-los, sob pena de estragar a magia.

Nesse conceito do alemão doido, daria para encaixar Márcio Américo Alves no último caso. Muito possivelmente, ele não é gênio coisa nenhuma. Márcio é um ser humano que tem um trabalho contínuo como dramaturgo, ator e escritor (o que inclui uma vergonhosa passagem como redator de piadas para o João Kleber da qual ele não se avexa em recordar), mas cuja trajetória de vida capta um espírito indizível de erros e acertos, realizações e frustrações, burradas homéricas, tentos questionáveis e uma lucidez que desafia até os loucos. Um espírito que alguns arriscam chamar de "espírito humano" - não aquela alma burguesa e pretensamente virtuosa, mas uma chama real que arde em intensidades distintas conforme a busca se intensifica ou arrefece.

Se falar sobre ele pode gerar o equívoco de transformar sua história em um épico, o mesmo não pode ser dito de seu trabalho, em especial seu primeiro (e até o momento único) romance, Meninos de Kichute, feito com apoio da Caixa Econômica Federal graças a uma lei municipal de Londrina (PR), onde reside. Meninos de Kichute também capta algo que não pode ser verbalizado sem incorrer no vazio da mera nostalgia, que é o espírito de uma época, um período (primeira metade dos anos 70) na qual a luta de classes entre garotos pobres, ricos e "remediados" beneficiados pelo "milagre econômico" era evidenciada pelos tênis que usavam.

Longe de querer brincar com a sociologia afetada que vítima grande parte dos escritores brasileiros, Márcio conseguiu traduzir o que boa parte de sua geração sentiu: a religiosidade temerosa, a busca pela sacanagem proibida, as brincadeiras sem e com malícia, os trotes e agressões cheios de malícia e maldade, o desprezo e a crueldade convivendo junto com a fraternidade enquanto os valores familiares despencam e o número dos eletrodomésticos aumenta. Essa tradução está nas palavras, mentiras e sentimentos do menino Beto, nem herói nem anti-herói, apenas o presidente dos meninos de Kichute, cuja história é, segundo seu autor, "60% ficção e 40% inventado". Ainda assim, a autobiografia está nas páginas, ainda que com licenças poéticas.

Mesmo com erros de revisão (a maioria dos nomes estrangeiros aparece grafada incorretamente) e até umas falhas de concordância textual, é uma das coisas mais emocionalmente potentes e enternecedoras que você vai ler até seus orgãos pararem de funcionar. A saga de Beto e seus "correligionários" pode virar filme, graças ao esforço obstinado do cineasta Lucas Amberg (que, diga-se de passagem, terá um trabalho absurdamente difícil em encontrar atores mirins que consigam transpor a complexidade emocional daquelas crianças simples). "Pode" porque ainda não está nada certo. A única coisa certa na vida de Márcio é que não há mais João Kleber nem outras drogas mais assassinas, que quase consumiram sua vida. Há um filho vindouro, quase vingando, há seu blog, talvez o mais lúcido da blogosfera (www.meninosdekichute.zip.net), e há muito trabalho.

Há também essa entrevista, onde não fala um mito, e sim o homem. Um homem que, se é "pré-verbal", consegue encontrar aqui as palavras para falar de si próprio. Se você foi um menino de Kichute (ou de Conga, ou de Bamba, ou de All Star...), e principalmente, se você é um menino de Nike, de Reebok ou de Adidas, pode encontrar muito que lhe interesse aqui.

Quem são os "Meninos de Kichute", o quanto eles têm de reais?
Os Meninos de Kichute são reais, tem um aqui neste momento respondendo a esta pergunta! Existe uma coisa legal que é a realidade que se transforma em ficção e volta como realidade, um ping-pong às vezes indigesto. Mas eles existem, mesmo hoje em dia, estão por aí: Meninos de Havaianas, de Nike, de Rainha... são garotos que essencialmente procuram viver a sua época, que mantém a tradição fraterna, que fazem pequenos pactos, brigam, fazem as pazes, Meninos de Kichute não envelhecem, apenas fazem aniversários. É comum eu estar com meus amigos, rindo, contando as mesmas piadas, pegando no pé de um e de outro da mesma forma como fazia há anos e aí uma das esposas/namoradas dizer algo do tipo: quando é que vocês vão crescer?

E como surgiu o lance de fazer o livro? Pela apresentação, parece que foi um misto de projeto profissional, odisséia e obsessão.
Eu trabalhava na Rede TV! e como passava mais tempo no bar do que escrevendo piadinhas pro João Kleber, os caras me mandaram embora. Em casa, sem ter o que fazer, comecei a escrever um conto sobre minha infância, gostei do estilo e continuei. Quando dei por mim tinha um livro em mãos. A princípio pensei em dar-lhe o título de Meninos da Rua Ivaí, mas descobri que eu fora plagiado com antecedência, já havia um livro com nome bem parecido: Meninos da Rua Paulo (clássico da literatura infanto-juvenil, idolatrado por - entre outros - Edgard Scandurra e Renato Russo), aí ficou Meninos de Kichute. Tenho recebido boas criticas sobre o livro de pessoas das mais diferentes áreas, de diferentes formações, e é um dos poucos livros patrocinados pela prefeitura de Londrina que se encontra esgotada sua primeira edição. To batalhando uma segunda, mas às próprias custas é foda. As grandes editoras parecem não dar muita bola pra este tipo de livro e conseqüentemente pra este público leitor. Mas o livro também se mantém graças a uma bem estruturada rede de amigos influentes, talvez, sem eles, o livro não chegasse aonde chegou. Eu, pra dizer a verdade, fiquei até surpreso quando soube que o Marcelo Mirisola gostou do livro, um cara do naipe dele!

Você não idealiza o período retrato em "Meninos...". É óbvio que tem muito da sua infância ali, mas você resiste à tentação de ficar preso à nostalgia ou de criar um mundo perfeito. É uma sensibilidade maior que isso. Só que uma onda de nostalgia toma conta de tudo hoje em dia, da música aos escritos. Isso é inerente do ser humano, preguiça criativa ou o que? O que você quis legar com o retrato desse período?
Na verdade não tinha a pretensão de deixar legado, até porque sou meio egoísta e não sou de deixar nada pra mingúem (risos). Mas o que eu tinha em mente era: Já tem uma porrada de livros sobre infância por aí, minha infância não teve nada de extraordinário, não fiquei cego e meu pai não foi exilado político, então o que fazer? Vou falar sobre a luta de classes entre meninos, reduzir a um tamanho microscópico a nossa sociedade. Em Meninos..., você observa que eles são uma sociedade organizada, com normas, castas, possuem uma estranha democracia, possuem até sua própria moeda. Olhando desta forma, Meninos... não tem nada de nostálgico, é sim uma forma simplificada de você compreender melhor as relações humanas. É bom que se diga que os meninos de Kichute também sabem ser cruéis. A crueldade não parece ser o melhor combustível pra nostalgia. Pra mim o livro é uma espécie de "rito de passagem". Claro, o livro evoca determinadas lembranças na rapaziada que já está ou beira os 40, mas isto é outra história.

E você acha que o pessoal que está, digamos, nos 20, pode encontrar alguma identificação no livro, ou hoje a "luta de classes" é outra?
Acho que a luta de classes é eterna, é atávica. O sentimento de inadequação é que faz o ser humano sair de sua zona de conforto e buscar algo mais, é aí que começam a se formar pequenos núcleos sociais com regras claras, é aí que entra o papo da luta de classes que na verdade não tem nada a ver com aquela balela de comunista, é mais a coisa da auto-afirmação, uma coisa que se vê muito na literatura de John Fante, Dostoiévski, Knut Hunsun e claro, na de Márcio Américo.

E esses meninos de hoje em dia, os meninos de Havaianas, Nike ou Adidas que você falou, como você os vê?
Existe, em razão de regras de mercado e mais uma pá de coisas que não vou falar por que são chatas pra caralho, uma geração de meninos de apartamento. Estes garotos têm uma estrutura social muito restrita, a sua situação de moradia parece estender-se a sua vivência, e aí falta ludicidade (porra!) nesta rapaziada. Ouço comentários do tipo: "pô você teve uma infância maravilhosa!" Minha infância era na verdade um quase inferno, uma coisa de privação, de falta de conforto, mas como existia o fator liberdade, isto ganha uma outra extensão. Mas no meu tempo também existiam os garotos de apartamento e os garotos "bundinhas" que nunca saiam de casa, as mães não deixavam. Mãe é foda.

Agora o livro tá pra virar filme... Ou não, já que a história toda parece estar envolvida em névoas e muita correria. Dá uma geral nesse projeto cinematográfico.
Assim que voltei de uma Fazenda pra tratamento de dependência química, fui procurado pelo diretor Lucas Amberg, ele comprou os direitos do livro e está correndo atrás. Teve um concurso aqui no Paraná que premiaria um projeto de longa metragem com um milhão de reais, meu roteiro ficou em segundo lugar, mas ao que tudo indica houve uma armação grande e deram o prêmio pra uma ex-secretária de cultura do Paraná e seus asseclas. Neste momento o Lucas está rodando por aí a cata de patrocínio. Se a coisa demorar vou sugerir pro Lucas um outro roteiro, talvez Meninos da Febem ou Meninos de Deus, acho que ficará mais fácil (risos).

Bom, literatura, teatro, TV, talvez cinema... Tem alguma outra mídia da qual você queira tomar parte?
Tem algumas mídias que eu não posso tomar parte, uma delas é a música. Porra, eu canto mal pra caralho, desafino até em pensamento. Uma lástima. Queria muito ter uma banda, mas com minha voz só se for pra cantar através de sinais. Gosto de artes gráficas, ilustração, faço animações em flash, influência de Hanna e Barbera, mas só pra alguns amigos, nada que possa constar em algum catálogo ou mostra.

Você conseguiu auxílio até da Caixa Econômica Federal para fazer o livro. Você acha que essas leis de subsídio ajudam os que não dispõem de contato para conseguir o mecenato que uns "grandes produtores" conseguem por aí? E como, nesses projetos realizados com parte do dinheiro público, é possível separar o joio do trigo?
Este papo de mecenato estatal é um perigo. O artista subvencionado acaba temendo perder a teta e assim vai aos poucos abrandando sua pena. Você já viu algum filme patrocinado pelo Gilberto Gil que fale mal do Brasil, do PT? Não é sempre assim, Beethoven era subvencionado, Brecht foi subvencionado, mas eram outros tempos. E quando se fala em subvenção pode botar aí a imprensa. Tenho alguns amigos jornalistas que já tiveram uma porrada de textos censurados pelo patrão. Subvenção é um perigo, a Sibéria fica logo ali.

E a imprensa hoje, em termos de crítica teatral e literária, serve pra que?
Pros críticos não morrerem de fome. Um crítico é essencialmente um impotente que tenta estragar o orgasmo alheio - esta frase não é minha, acho que é do Millôr. Tem críticos sérios por aí, mas tem duas coisas em especial que fazem da crítica uma coisa odiosa: uma é o total desconhecimento. Sujeitos falam de literatura sem entender picas, falam de teatro... enfim... Outra é o critico que fala em nome do editor, do dono do veículo de comunicação pra quem ele trabalha, ele só reproduz, um papagaio de luxo. A Veja tem um lá que ganha sua ração diária a troco de falar mal do Marcelino Freire, do Ademir Assunção... Outro dia, o jornalista Thiago Ney, da Folha de São Paulo, encerrou sua critica ao novo trabalho de Bob Dylan conclamando o público a ouvir coisas como New Order, Automatic e Be Your Own Pet e ainda arrematou: "quem precisa de Bob Dylan?" Então eu te pergunto, pra que serve Thiago Ney?

Você tem um outro livro de poesias, mais independente e bem diferente do que você escreve hoje em dia, o "Preciso dar um jeito na vida". Esse livro ainda vigora ou é só um documento de um período diferente e, aparentemente, mais duro e amargo?
É. Na época eu tinha em mente dar um jeito na vida (risos). Era isto ou morrer. O livro mostra um pouco desta inadequação, de não se sentir bem no planeta. A linguagem é despojada, a maioria dos poemas terminam de forma trágica, acho que andei lendo muito Augusto dos Anjos na época. Na verdade a linguagem é uma espécie de ranço, de sobras dos anos 80, quando li muita poesia beat, poesia marginal brasileira, conheci Ana Cristina César, Chacal, Torquato, isto acaba influenciando de alguma forma, hoje em dia tento me livrar, mas é foda. O estilo destes caras é simples no sentido de que vai direto ao assunto, não depende de rimas e da métrica, aliás, sou uma merda com métrica, reprovei duas vezes em matemática.

Falando em vida, consta que você passou uma ou duas estadias no inferno... Conta esse período, as internações, esse lance sinistro.
Quem te falou que eu estive no inferno? Olha, taí uma coisa que eu não quero mais falar. Para que eu vou falar pra você que durante 10 anos eu bebi pra caralho, que depois comecei a cheirar feito um tamanduá até desaguar no crack onde me fodi? Você acha que eu vou tornar público que já amanheci naqueles hoteizinhos da Estação da Luz, chapado, duro e deprimido? Você acha que eu vou me abrir e falar que cheguei a um ponto de vender minhas coisas pra comprar drogas? Você acha que vou te confessar que já fiquei internado numa clínica cheia de psicóticos, fazendo força pra parecer normal? Você acha que vou te contar que em 2004 fui internado uma fazenda de recuperação onde eu me fodi, mas acabei vencendo a parada? Você acha que eu vou te contar que hoje em dia eu faço parte do NA (Narcóticos Anônimos) e que no momento em que você lê esta linha estou completando dois anos limpo? Você acha que eu vou abrir meu surrado coração e dizer que devo isto a minha esposa Renata, meus pais, a alguns amigos como o [Mário] Bortolotto, Fernanda D'Umbra? Você acha que eu contaria isto tudo pra você?

Provavelmente não. Isso não dá matéria pra Caras.
Deixa eu te dizer uma coisa sobre a Caras. Sempre que vou cortar o cabelo ou levar minha mulher ao médico, costumo folhear estas revistas, as campeãs de salas de espera, tipo assim, já que você não tem nada pra fazer, leia Caras. Eu fico folheando aquela revista pensando: "porra, tem gente pior que eu".

Mas já que falamos do inferno, seu blog tem uma espécie de teologia que passa por um cristianismo anti-clerical e chega em visões, no mínimo, contundentes de toda tradição e crença cristãs. O livro também transparece as sementes disso num Marcio-Beto mirim. E aí, Marcio Américo é o anti-Bento XVI (já que de Anticristo você não tem muito) definitivo? Ou o buraco é mais embaixo?
Beto é um garoto que sofre com um Deus que ele não compreende, mas que acredita. Neste sentido ele assemelha-se a John Fante/Arturo Bandini. Em Pergunte ao Pó tem um trecho em que ele diz mais ou menos assim: "eu viro as costas pro mar e digo: não há mar, mas eu sei que o mar está lá, rugindo, fazendo barulho em minha cabeça". Beto era assim. Mas nos textos do Márcio há outro tipo de Deus, algo que eu não sei explicar, mas que pelo menos não me incomoda. Eu cuido das minhas coisas e ele cuida das dele. O que me incomoda na religião é o ateísmo deles, o ateísmo cristão. O sujeito se diz atleta de Cristo, mas mente e usa violência, o outro é beato e sonega impostos, cruza sinal vermelho... Os cristãos em sua maioria são os grandes ateus porque eles sabem que o deus deles não faz porra nenhuma, não pune ninguém, eles acreditam mesmo é no diabo. Peça pra um cristão desafiar o diabo! Eles morrem de medo. Mas de Deus eles não tem medo, tão cagando e andando. Aí eles dizem que eu sou ateu. Vão se foder. Se foder, não, sifudê! Os cristãos inventaram um tipo de igreja onde não é necessário amar o próximo. Porra, não dá pra amar incondicionalmente o próximo, principalmente se entre estes próximos estiverem o Latino e a Preta Gil, então a igreja criou um rol de normas, rituais, datas santas, você cumpre tudo isto e está salvo, não precisa amar o próximo. Boa, né?

E, pra dar aquela finalizada: você deu um jeito na vida? Aquele pontapé na bunda, dado por Deus, serviu de alguma coisa?(rs)
Acho que o segredo é tentar sofrer o menos possível. Ela foi planejada pro haver sofrimento: bebês sofrem, crianças sofrem, adolescentes sofrem, adultos sofrem, velhinhos sofrem. A vida não tem jeito.

Blog do Márcio Américo