Absorventes
absorvem a qualidade da intimidade
por
Carmela Toninelo
John
Gray, um ex-monge casado, e fino observador dos relacionamentos humanos,
transformou suas anotações num best-seller do entretenimento
popular chamado Homens são de Marte; Mulheres são de Vênus.
A crítica sugeria que o livro era um requisito indispensável
para quem quisesse atingir um grau mais profundo de intimidade e uma compreensão
mais plena de seu parceiro. Concordar ou não é um caso a
parte, o fato é que John Gray cometeu um erro fatal ao esquecer
de incluir em suas anotações o complexo mundo feminino dos
absorventes.
E não que Fogo nas Entranhas
(Dantes Editora, 124 págs., R$ 18) seja um guia prático para
a compreensão de ambos os sexos, mas Vênus e Marte sempre
se atraíram e o humor mesclado com o coito sempre foi a atração
inspiradora de Pedro Almodóvar. Um homem espanhol que nunca negou
a raça e observa finamente os relacionamentos humanos, bem como
não esquece a presença de absorventes, mês a mês,
entre as pernas das mulheres.
Há quem diga que Pedro Almodóvar
só fazia filmes pornôs antes de escrever esta novelinha safada
em 1981. Afinal, a paixão de Almodóvar por divertidas perversões,
ambientes gays e inferninhos já chegou ao público em filmes
como Labirinto de Paixões de 1982 e nos explícitos
títulos Sexo Vai, Sexo Vem... de 1977 e A Queda de Sodoma
de 1975. Mas este livrinho de bolso da Coleção Babel - focada
na pornografia, no sensacionalismo e na literatura underground - é
dessa época. Como em Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos de 1988, as mulheres são as protagonistas soberanas de
Fogo nas Entranhas (que Regina Casé traduziria para 'Calor
na Bacurinha' - conselho, leia o livro e só depois a introdução.
Regina por absortas páginas quis ser mais Almodóvar do que
ele próprio tende a ser).
A história trata de um grupo
bizarro de cinco mulheres, moldadas pelo autor para instigar qualquer tipo
de fantasia sexual: uma chinesa, uma frígida, uma ex-espiã
disfarçada, uma figurante de faroestes europeus e uma assistente
de laboratório químico, que um belo dia foge para Ibiza com
um grupo de hippies levando só a roupa do corpo. Todas "vadias"
e ex-mulheres de um chinês sentimental, dono de uma fábrica
de absorventes íntimos - que de tanto ser traído se transforma
no vilão da história. Em sua vingança, Chu Ming Ho
condena todas as mulheres de Madri a se tornarem escravas do desejo.
Vinte e cinco breves capítulos
e há mais personagens bizarros para serem analisados. A anciã
de setenta anos ainda virgem, mestra de enganar-se a si própria
e Roque, um marido quase exemplo de toda boa casa onde reina o desejo carnal.
Como em um barato folhetim pornográfico, há mocinha na história.
Aqui ela não podia deixar de ser uma ex-freira - de uma sensatez
insana, imprópria de uma heroína. Mas a marca inconfundível
de Almodóvar está ali: além do humor deslavado, a
incrível habilidade de reunir fragmentos distantes da vida e atá-los
em um só nó.
Almodóvar sabe atrair, e não
apenas pelo sexo, pela amizade ou casualidade. O espanhol ganhador do Oscar
de melhor filme estrangeiro ano passado por Tudo sobre Minha Mãe
tem o dom de conduzir todos os seus personagens a uma única e derradeira
cena final. Seja em novelinhas, seja em filmes pornográficos, o
Pedro é a pedra da intimidade. Ele sempre soube ir a fundo nas entranhas
humanas.
Carmela
Toninelo é editora do revista Viés - www.vies.unisinos.br |