"Diário da Turma" quer salvar a memória do rock nacional
por Alexandre Petillo 


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Não é nenhum segredo que a memória cultural brasileira é curtíssima, seja em qual vertente for. Encontrar boas informações sobre músicos, poetas, escritores ou qualquer artista nacional exige uma disciplinar pesquisa e boa dose de paciência e persistência. 

Com o rock nacional não podia ser diferente. A explosão popular desse movimento, durante a década de 80, ainda é recente e é difícil medir a extensão de seu impacto na cultura moderna. Poucos falaram com propriedade sobre o assunto e quem não possui alguns exemplares das revistas musicais que cobriram o período (Bizz, Pop, Pipoca Moderna, para citar apenas algumas), não contam com muita informação documentada. Existe um livro do Cazuza aqui, um do Raul Seixas lá, um Mutantes aqui e um Renato Russo acolá. 

Disposto a não deixar morrer a memória do rock brazuca, o jornalista Paulo Marchetti vasculhou o baú de memórias e trabalhou durante três anos para colocar nas livrarias o recém-lançado "O Diário da Turma 1976-1986: A História do Rock de Brasília". O projeto viu a luz do dia através da editora Conrad, que se mostra com um perfil cada vez mais jovem, já que é feita por e para quem se formou ouvindo o bom e velho rock'n'roll. 

O jornalista morou em Brasília durante pouco mais que o período estampado no título do livro, e vivenciou a criação da "Turma", que mais tarde transformou-se nas maiores bandas de rock do país. Marchetti viu o Aborto Elétrico em 81, aos 11 anos, testemunhou a juventude efevercente que tomou conta da capital brasileira, com roupas rasgadas, atitudes contestadoras, drogas e punk rock. Mas viu de longe, era jovem demais para freqüentar as festas estranhas com gente esquisita. 

"Eu era bem mais novo do que a maioria do pessoal. Eu tomava cascudo do pessoal. O pessoal freqüentava muito a minha casa, porque a minha irmã era da turma. Como eu ia sempre para São Paulo, comecei a trazer discos de punk, e quando o pessoal ia para casa, acabavam roubando algumas fitas minhas. Aliás, uma particularidade da turma era de que todo mundo era muito amigo, mas se você desse bobeira com um disco ou uma fita, meu amigo, sumia para sempre", relembra Marchetti. 

A motivação para escrever o livro começou após a morte de Renato Russo, quando a mídia ao retratar a história do rock de Brasília dava como ponto de partida o primeiro disco da Legião Urbana. Com a morte de Renato, que sempre demonstrou interesse em escrever essas histórias da "Turma", Marchetti se viu disposto e interessado em preencher esse vácuo da história. "Eu cresci com esse pessoal, ouvindo as histórias engraçadas e vendo nascer as principais bandas do rock nacional. O Renato sempre quis ser escritor e naturalmente a incumbência de colocar no papel esses relatos caberia a ele. Com a morte dele, fiquei esperando por alguém que tomasse a frente nesse projeto e ninguém se apresentou. São histórias muitas boas para serem deixadas para trás ou na memória de alguns", conta o escritor. 

Inspirado na bíblia do punk "Mate-me Por Favor", Marchetti construiu um livro oral, recheado apenas de declarações, com poucas linhas apenas delimitando o contexto das narrativas. "Fazer um livro apenas com declarações foi a maneira que eu encontrei de deixá-lo mais honesto e fiel. Algumas pessoas contaram histórias tão doidas que eu precisei omitir seus nomes para preservar algumas famílias de hoje em dia". 

Durante os três anos que dedicou a coletar declarações e pesquisar informações, Marchetti ouviu 60 pessoas que de alguma forma participaram da "Turma", sem estabelecer qualquer hierarquia, priorizando as boas histórias. Encontram-se lado a lado nas páginas do livro, famosos como o atual sex symbol Dinho Ouro Preto e o paralama Herbert Vianna e anônimos como Buticão e Pomarola. "Todo mundo que participou do livro foi superimportante para o desenvolvimento da Turma e das bandas que fizeram sucesso depois. Quando se ouve histórias dos shows do Capital, da Legião, da Plebe, imagina-se que ia banda lá, de carro, tocava e ia embora. Mas não foi assim. Tinha o cara que emprestava um pedestal, outro emprestava um baixo, um levava uns baseados, outros davam carona. Tinha o pessoal que vendia as cervejas e organizava as festas. Todo mundo é importantíssimo”. Outros grandes atrativos são as fotos que ilustram o livro, que, segundo o autor, "99% são inéditas". 

O autor não teme ser enquadrado entre aqueles que esperam lucrar com o culto a Renato Russo e a volta do Capital Inicial ao topo das paradas. "Eu fiz tudo com o aval de todo mundo da turma. Sem contar, que esse livro não é sobre a Legião Urbana ou o Capital Inicial. Não é sobre nenhuma banda. É um diário que fala de uma turma de amigos, que acabaram se tornando os grandes astros do rock de sua geração", diz. 

Empolgado com a experiência, Marchetti garante que vai fazer o possível para manter viva a memória do rock nacional. "Não se pode esquecer esse período. Se precisar, eu escrevo um livro sobre o RPM, o Ultraje a Rigor, o Ira!. Porque se deixar, vão esquecer. A mídia nacional sempre desprezou o rock brasileiro dos anos 80. Sempre questionaram a autenticidade punk dos filhos de diplomata. Cara, não precisa ser pé-rapado para ser punk. Você tem que ser negro para criticar o racismo? Tem que passar fome aqui em São Paulo em apoio aos famintos da África? A maioria dos jornalistas brasileiros são imbecis, ficam babando para tudo que vem com o aval dos jornais ingleses. A moda agora é a banda americana Strokes. Eu ouvi e achei muito bom, mas existem coisas boas aqui também. Não tenho vergonha de usar uma camiseta da Legião Urbana. Eu li em algum lugar um jornalista dizendo que eu sou um estudioso do rock nacional. Que merda! Eu não sou estudioso porra nenhuma, eu só sou um cara que se alimentava da música que estava rolando. Um consumidor, um apreciador como todo fã de rock", alfineta. 

Marchetti aproveita para ressaltar que existe uma grande diferença entre o seu livro e o que Dinho Ouro Preto está fazendo. "O Dinho também está escrevendo sobre a Turma, mas ele está mesclando alguns elementos de ficção, além de estender a história até os dias atuais. Eu só falo do que rolou de verdade, até 86, quando a Turma acabou, de tão inchada que estava. Esperavam também que uma outra banda, a Elite Sofisticada, estourasse. Todo mundo apostava neles como a nova Legião. Não virou nada e foi o começo do fim".